BALADA Nº 4
De repente ele parecia estar no quarto, deitado de costas, a cabeça levemente voltada para a esquerda sobre o travesseiro alto e incômodo. Deslizou o olhar ao longo do braço que se estendia para fora do leito. A mão se perdia na penumbra. Talvez estivesse no quarto, talvez não. Viu-se invadido por um grande e silencioso medo. Ergueu os olhos. A menina estava ao seu lado, de pé, nítida, apesar da obscuridade. Linda, os cabelos longos, cheios, castanho-claros, o vestido de tons indefinidos como uma pintura antiga. Tentou levantar-se, mas uma estranha imobilidade tomava-lhe todo o corpo que parecia, porém, sem peso. Ela aproximou suas finas mãos do braço estendido e, sem tocá-lo, pôs-se a dedilhar sobre ele; depois recuou lentamente até perder-se também na penumbra. Um súbito tremor devolveu-lhe bruscamente todo o peso do corpo e ele acordou com o coração em descompassada angústia.
Demorou alguns segundos para dar conta de que estava no sofá do pequeno escritório junto ao quarto, deitado meio encolhido sobre o braço esquerdo em completa dormência. Ergueu-se devagar; doíam-lhe a cabeça e o pescoço. O abajur de leitura sobre a escrivaninha permanecia aceso, deixando o ambiente infiltrado por uma luminosidade amarelada e débil. Foi à janela, chovia fino. Lá fora edifícios distantes, quase todos às escuras. Voltou-se então para a parede oposta, onde o grande relógio oitavado o trouxe de vez à realidade – três e quinze. Passou os olhos pelos livros na estante, achando-os inúteis, ao mesmo tempo que a ideia lhe soava absurda. Julgou ouvir longe, muito longe, o som de um piano – mas não, nada...
Sentou-se no sofá, massageando o braço, enquanto olhava para si próprio, um tanto perplexo: os sapatos, a calça, o cinto, a camisa. Dormira desse jeito, explicou-se. Qual a cor do vestido? Ela sorria, ou tinha o semblante lânguido? Branco, azulado, enevoado – o vestido de uma dançarina... Levantou-se, o braço formigava menos, viu sobre a escrivaninha alguns processos para serem analisados. Isso pouco importava. Desde a volta da mulher – há quase uma semana – tudo submergira no silêncio e na apatia. Por quanto tempo ainda?
A porta do escritório estava fechada. Dar três passos, abri-la, ganhar o corredor e ir ao quarto era, agora, uma jornada penosa, um longo caminho em direção ao nada. Imóvel no leito, a mulher nada lhe diria, nada responderia, não lhe dirigiria o olhar, não esboçaria um sorriso, nada. Quantas vezes seus corpos foram um só nesses quase trinta anos em que estiveram casados? Não, pensou, ainda estamos, ainda não nos separamos. Em breve estaremos. Que seja logo, por que prolongar essa amargura...
De novo o relógio – três e vinte. O tique-taque lembrou-lhe o metrônomo sobre o piano na saleta. Parecia sentir os dedos da menina, suavíssimos, acariciando seu braço, mas tal suavidade acentuava a incômoda opressão no peito e marcava com paradoxal rudeza a compreensão de que a perda, agora nítida, já se fizera anunciada há muito, muito tempo.
Renoir... o rosto, o quase sorriso, o vestido...era uma pintura de Renoir, ou talvez Degas. Pôs-se diante dos livros a procurar os impressionistas, mas interrompeu a busca como se algo dentro de si a reprovasse. Era preciso vê-la. Abriu a porta lentamente, qualquer ruído seria muito perturbador, embora não soubesse o porquê. O corredor estava aceso, o quarto aberto. A luz, entrando, formava uma passadeira clara e oblíqua que atapetava parte do chão e alimentava a penumbra. No fundo a cama alta. Entrou também, passou pela acompanhante, que cochilava numa poltrona e alcançou o cerne de sua dor, junto à cabeceira.
Ela respirava pausadamente. O cobertor, muito estirado, ia até pouco acima da cintura; sobre ele os braços se estendiam ao longo do corpo. Da mão esquerda prolongava-se para o alto um fino tubo ligado a um frasco transparente. Uma haste metálica presa na lateral da cama hospitalar sustentava-o na extremidade. Quis ver-lhe o rosto, que o escuro encobria, mais uma vez. Quantas vezes já, quantas vezes a mesma incredulidade. Permaneceu imóvel, fitando o vazio, repassando na mente os relevos e reentrâncias, como se fossem partes de si – os olhos semicerrados, a boca entreaberta, os malares salientados pela magreza, os sulcos nasais aprofundados. Pousou a mão direita delicadamente sobre um dos braços, acariciando com a esquerda a testa alta. Os cabelos cacheados ou ondulados da menina pareceram subitamente estar ali – castanho-claros, cheios, vivos, esmaecidos, lisos, ralos, as raízes brancas, via-os com perplexidade. Só então percebeu que a luz fora acesa. A acompanhante acordara e do outro lado da cama olhava-o.
Ele esboçou um sorriso, arqueando as sobrancelhas quase imperceptivelmente. Vendo nisso uma pergunta, disse-lhe a acompanhante, com uma inflexão levemente cantada na voz – “ela está bem tranquila hoje... foi muito bom o doutor ter decidido mantê-la sedada o tempo todo... o senhor quase não tem dormido, isto não faz bem... procure descansar mais... sedada ela não sofre tanto... Deus sabe o que faz, só ele sabe...” começou então a contar o gotejamento do soro e continuou quase sussurrando – “vai deitar, vai, o doutor ficou de passar aqui bem cedinho... vai deitar, qualquer coisa eu lhe chamo.”
Ao deixar o quarto voltou-se da porta e ficou a olhar. A cama de casal fora retirada. Sobre a cômoda amontoavam-se frascos, medicamentos, caixas, toalhas. Também sobre a pequena mesa oval ao lado da poltrona. Os porta-retratos haviam sido guardados. De novo a opressão no peito. Costumava sentar-se na poltrona e colocar na mesa o copo, o uísque, o balde de gelo. Ela invariavelmente reclamava “cuidado, não vá quebrar os porta-retratos.” Eram as noites de conversas e discussões, às vezes doces, às vezes amargas, às vezes terminadas em ressentimentos prolongados, às vezes com os dois rolando na cama em gozos também prolongados.
Retornou ao escritório; três e meia. Sentou-se diante da escrivaninha, folheou um dos processos sem qualquer atenção. Renoir, Degas, ela não teria esta dúvida, pensou, conhecia artes muitíssimo mais do que eu... conhecia... a irreversibilidade deste verbo no pretérito. E agora? Onde ela está agora? O que dela resta agora no escuro de sua inconsciência? Não ouvir mais a sua voz, não irritar-se mais com as suas zangas, não rir mais das suas graças, não poder mais olhá-la sem que ela percebesse e então se deparar com o insondável mistério que há no outro... não tivemos filhos. Ela se culpava, sem nunca expressar sua dor por não poder tê-los... terá sido melhor, quem sabe. Não, como estou só, deus...
Ergueu-se subitamente. Irritava-o a ideia de um deus, da qual não conseguia livrar-se. Voltou à janela. A chuva aumentara, salpicando vivamente os vidros. Seus olhos puseram-se a percorrer o ambiente, buscando tornar inteligível a pergunta que subjazia em seu coração – silenciosa e inquietante, e para a qual sabia não haver resposta. A estante, os livros, os processos, quase três e quarenta. Tique taque... o piano, o vestido azulado, um leve arrepio no braço, a chuva nos vidros, será aberto ou fechado o universo? O que resta, senão a morte? Aproximou-se da escrivaninha, desligou o abajur, saiu do escritório, atravessou o corredor, a sala, entrou na saleta e, mantendo a luz apagada, deixou-se cair numa poltrona.
Fechou os olhos. “Carcinomatose”, disse o médico,”infelizmente muito avançada, em fase terminal,”... seguiu com explicações que já não tinham qualquer importância. Um pequeno discurso em tom levemente condoído, levemente confortador e, no entanto, frio... há apenas quatro meses. Internações, altas, testes, exames sucessivos, intermináveis e a profunda tristeza nublando os olhos dela. Fugiu das lembranças abrindo os seus. Procurou no escuro o contorno do piano. Sobre ele o metrônomo e um pequeno Beethoven de bronze. Porém a música que começou a flutuar em sua mente era uma balada de Chopin. A menina parecia estar ali. Sem se dar conta, ele sorriu. Recordava agora, tão claramente. Não sabiam ainda se já estavam namorando, embora soubessem que sim. Encontravam-se sempre. Ela um dia trouxe-lhe um presente. “Por que? Não é meu aniversário...” ela tocou-lhe o braço de leve. "E é preciso um dia especial para se dar um presente?” Abriu. Era um disco. As quatro baladas de Chopin. A capa reproduzia uma pintura – uma menina. Linda, os cabelos longos, cheios, castanho-claros...” está me dando este disco porque é você quem está na capa?” “Bobo, é Renoir.” Deram-se as mãos, sorrindo, seus corpos não tinham peso.
Para onde irá você agora? Para onde irei eu, aqui ficando, só, com essas lembranças? Até quando tudo isso? O pêndulo imóvel do metrônomo marcava o silêncio. A chuva continuava. O soro gotejava lentamente. No escritório o grande relógio oitavado teimava em mostrar a inutilidade do tempo – três e quarenta e cinco.