top of page

                                             Por uma princesa morta

 

 

      Revirando-se na cama, subitamente ele percebeu que já não dormia. As confusas imagens  que permeavam sua mente – uns braços ressequidos, os degraus de uma capela – foram-se esgazeando por sobre o fundo escuro de seus olhos cerrados. Então, com leve inquietação, abriu-os. De novo o quarto, de novo a mesma manhã de todos os dias. Não, não era a mesma. Embora a cortina clara da janela deixasse entrever um dia de sol, o luto nublava-lhe a vida. O enterro fora na tarde anterior.

      Sentou-se, espreguiçou-se com algum cuidado. Doíam-lhe as costas, a cabeça latejava. Deixou o olhar vaguear pelo travesseiro, pelo lençol, pela colcha, pela solidão do quarto - essa sim, sempre a mesma. Depois permaneceu imóvel, fitando os tacos antigos do assoalho, sem se dar conta de que ouvia o leve sussurro monótono do ar condicionado. Ela não teria sessenta, pensou. Muito nova.  E sempre se grita no confrangido silêncio da decepção: Que injustiça! Mas é um lugar-comum para extravasar o medo indizível que nos espreita. Meneou rapidamente a cabeça para afastar o que acabara de pensar e então levantou-se. Estava nu. Foi para o banheiro.

       Depois de urinar voltou-se para o espelho sobre o lavatório. E seus olhos azuis percorreram os frustrantes traços do envelhecimento no cotidiano do rosto, o seu rosto, comum para os outros, talvez. Para si mesmo,  aquela face arredondada, gorducha, de nariz alargado, calva ampla e sobrancelhas grisalhas em desalinho, mostravam sempre o travo da estranheza. Fitou-se ainda por alguns segundos. Ecce homo, ironizou. Então, pôs-se embaixo do  chuveiro e, abrindo rapidamente a torneira, deixou que a água fria lhe vergastasse primeiro  o dorso, depois a nuca e por fim o crânio. Trêmulo e de olhos fechados ficou  a pensar em náufragos num oceano gelado sob a noite estrelada. O navio, diziam, era insubmergível, mas não completou a primeira viagem. Quase em pânico fechou a torneira e enrolou-se na toalha.

        Ao retornar ao quarto, sentou-se mais uma vez na cama e deixou que aquela angustiosa opressão se convertesse em lágrimas. Por que? Por que isso?

Ele nem a conhecia tanto, eram por certo bons colegas, bons professores que trocavam ideias nos conselhos de classe e se percebiam afins, embora não declarassem. Mas ela se aposentara e, desde então haviam se visto duas ou três vezes, se tanto. A voz dela era levemente aguda e a fala pausada, melodiosa, mas escondia, achava ele, algo de amargo, ou de ceticismo camuflado. Por quem choras, peregrino? A pergunta, elaborada e sussurrada no interior de seu cérebro, súbita e ácida, surpreendeu-o, mas devolveu-lhe novamente a visão silenciosa dos tacos do assoalho. Esboçou um sorriso. Peregrino? Comiseração por mim próprio, refletiu. Peregrino, andarilho, funâmbulo, sonâmbulo, jogral, bobo da corte. Eis o que és, obscuro professor.  Mas hoje, daqui a duas horas, estarás na sala de aula, explicando com entusiasmo bem ensaiado, os pensamentos argutos dos pré-socráticos. Pressentiram tudo os gregos. Um dos tacos estava solto e o chão empoeirado. Ergueu-se, foi ao guarda-roupas. Devo usar terno e gravata, pensou contrariado. À tarde faria uma palestra num Centro Cultural. Escolheu o traje e vestiu-se.

      Depois do café, foi para a sala, sentou-se à mesa para rever as anotações sobre o tema da palestra, rascunhadas ao voltar do enterro. Não as leu. O que via eram as pessoa no velório, algumas tristes, outras um tanto alheias. O marido, pálido e perplexo, ao lado do caixão, olhando para as flores que recobriam o corpo, não para o rosto. Mais tarde, uma senhora miúda, com uma bata branca sobre a roupa escura, portando uns folhetos com preces, veio oferecer-se para as orações de encomenda do corpo. O marido dispensou-a. O caixão foi fechado. As pessoas começaram a deixar a capela. Era a capela B, lembrou-se, sem saber porque, vendo de novo suas mãos segurando o papel com as anotações: Heráclito – tudo flui. Será? A questão do ser em Parmênides...

         Sentiu um leve desconforto no peito e com os olhos novamente marejando, lembrou-se do seu jovem amante com quem brigara há alguns meses. Tivera outros, mas o sentimento por esse era mais intenso. Evitava a palavra amor. Aos sessenta e três anos – disse consigo – nada há que se esperar.  E as cenas do velório retornaram súbitas. Ao sair da capela B, olhou para o interior da capela A e sentiu-se golpeado, agora sim, por devastadora amargura. Lá estava um pequeno caixão branco e de pé, ao lado dele, uma jovem mulher cujo olhar perdia-se no vazio talvez para sempre. Leu a placa de identificação junto à porta da entrada. Uma menina. Sete anos. Nada saberás, menina, das alegrias e das tristezas do mundo. E estas são tantas, refletiu, ajeitando a gravata e levantando-se da mesa como se para fugir da cena.

          A gravata começou a incomodar-lhe. Tirou o paletó e voltou para o banheiro. Diante do espelho desfez o nó e tentou refazê-lo. Não conseguiu. Algo se lhe embaralhou no cérebro e ele perdeu a noção dos movimentos para enlaçar a gravata. Permaneceu perplexo olhando a tiras de seda azulada descidas desde o colarinho. Fustigou-lhe por instantes o impulso de enforcar-se. Depois olhando para os próprios olhos no espelho, ficou a imaginar a cor dos olhos da menina. Qual seria? Não importa mais. Imaginou então o pequeno caixão branco sendo levado pela alamedas lentamente enquanto pairava no ar, quase inaudíveis, as notas suavíssimas de uma pavana.

        Retornaram os olhos ao espelho, refez-se a memória, enlaçou a gravata. Perfeito o nó. Ao sair do quarto deu-se conta do sussurro monótono. Voltou e desligou o ar condicionado. Na sala, vestiu o paletó, pôs as anotações num bolso. Apalpou os outros. Chaves, cartões, celular. Nada faltando, saiu para mais um dia ensolarado, rotineiro e inexplicável. Sempre e nunca o mesmo.

 

 

Por uma princesa morta

                        © 2016 O poeta.                            

bottom of page