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Excertos, contos, crônicas

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         Neste nosso mundo atual em que os recursos tecnológicos parecem ilimitados e exercem total fascínio, o texto que se segue pretende, a partir de um excerto de Hannah Arendt, refletir sobre este progresso e suas consequências no comportamento do ser humano, individual ou coletivamente. Procura atentar para a ideia de que a tecnologia pode não só trazer benéficos essenciais para o homem, mas também ter efeitos nocivos e destrutivos se ele descurar da ética e colocar-se, não como sujeito criador e manipulador da técnica, mas como seu escravo.

 

                             

                         CONSIDERAÇÕES SOBRE UM EXCERTO DE HANNAH ARENDT

   “Esse homem do futuro, que segundo os cientistas será produzido em menos de um século, parece motivado por uma rebelião contra a existência humana tal como nos foi dada – um dom gratuito vindo do nada (secularmente falando), que ele deseja trocar, por assim dizer, por algo produzido por ele mesmo. Não há razão para duvidar de que sejamos capazes de realizar essa troca, tal como não há motivo para duvidar da nossa atual capacidade de destruir toda a vida orgânica na Terra. A questão é apenas se desejamos usar nessa direção nosso novo conhecimento científico e técnico – e esta questão não pode ser resolvida por meios científicos: é uma questão política de primeira grandeza, e, portanto não deve ser decidida nem por cientistas nem por políticos profissionais”.
  O excerto em epígrafe está contido no prólogo de “A Condição Humana”, obra apresentada ao público em 1958, portanto já há pouco mais de cinqüenta anos. A autora o inicia fazendo menção ao lançamento em 1957 do primeiro satélite artificial – o famoso “Sputnik” – proeza conseguida pela então União soviética. Estávamos em plena guerra fria e o mundo estendia-se, em incerto e angustiante equilíbrio, ao longo do tenso fio que os polos antagônicos da política sustentavam.
   O homem fora capaz de construir um veículo que, superando a velocidade de escape do planeta, pôde deixar no espaço um artefato orbitando a Terra. Um triunfo tecnológico inigualável até então, evento cuja importância – escrevia a autora -“ultrapassa todos os outros, até mesmo a desintegração do átomo”.[1]
   Contudo, o deslumbramento que o fato acarretava era toldado pelo traço sombrio que o delimitava: os objetivos políticos e militares que não só o tornaram possível, mas que, sobretudo, atuaram como instigadores à sua realização. Tratava-se, na verdade, de uma demonstração de poder. Uma exibição da capacidade tecnológica e uma comprovação do avanço científico por parte de uma das potências protagonistas do cenário bipolar do mundo.
  A palavra políticos há pouco mencionada evoca - no contexto pretendido nesta breve reflexão - a polis, a cidade, a reunião dos homens na cidade, as relações que os homens necessariamente têm que estabelecer entre si para que possam sobreviver. Com efeito, o ser humano somente é capaz de se constituir como ser, presente em si próprio e no mundo, se os outros humanos nele estão presentes.
  Mas as relações entre os homens, ainda que vitais, se estabelecem sempre através de tensões, conflitos, desconfianças e desejos. Isto porque o homem é dotado de autoconsciência, e esta é, simultaneamente, a possibilidade máxima de liberdade envolvida pelo sentimento máximo de aprisionamento. Isto é, a percepção de que cada um é isolado irredutivelmente de todos os demais, ainda que estes sejam imprescindíveis.
  E, mais que isso, é ter a certeza de que é indissociável do pensar humano o sentimento de estranheza perante o mundo. A natureza, de que somos parte, se estende aos nossos olhos e é impossível desvendá-la. No fundo as coisas nos são ininteligíveis, embora aparentemente pareça-nos compreendê-las.

   Há dois belos trechos que refletem essas questões e valem ser lembrados. O primeiro é de Kierkegaard, citado por Ernest Becker[2]:

   Toda a ordem das coisas enche-me com um sentimento de angústia, desde o simples mosquito até os mistérios da encarnação; tudo me é inteiramente ininteligível, e particularmente minha própria pessoa. Grande e sem limites é minha tristeza. Ninguém a conhece, exceto Deus no céu, e ele não pode ter pena.

   O segundo é de Erich Fromm[3]:

   O homem é dotado de razão; é a vida consciente de si mesma; tem consciência de si, de seus semelhantes, de seu passado e das possibilidades de seu futuro. Essa consciência de si mesmo como entidade separada, a consciência de seu próprio e curto período de vida, do fato de haver nascido sem ser por vontade própria e de ter de morrer contra sua vontade, de ter de morrer antes daquele que ama, ou estes antes dele, a consciência de sua solidão e separação, de sua impotência ante as forças da natureza e da sociedade, tudo isso faz de sua existência apartada e desunida uma prisão insuportável. Ele ficaria louco se não pudesse libertar-se de tal prisão e alcançar os homens, unir-se de uma forma ou de outra com eles, com o mundo exterior.
  Voltando ao prólogo de Hannah Arendt, ela observa que aquele feito de 1957 parece ter proporcionado aos homens um sentimento de alívio – ou um reforço na esperança – como se tivesse conseguido “dar o primeiro passo para libertar o homem de sua prisão na Terra” [4], como a imprensa na época noticiou.
   E a percepção de sua própria finitude, ou saber e querer sempre recusar isto: “Ter emergido do nada, ter um nome, consciência do próprio eu, sentimentos íntimos profundos, um cruciante anelo interior pela vida e pela auto-expressão e, apesar de tudo isso morrer” [5].

   Aldous Huxley[6], prefaciando uma obra Krishnamurti, refere-se ao homem como um anfíbio, pois que ele vive simultaneamente em dois mundos, o mundo da realidade, a cujas imposições da natureza tem de submeter-se e o mundo por ele fabricado, por ser autoconsciente: o mundo dos símbolos. Sem estes símbolos – lingüísticos, matemáticos, pictóricos, não seria possível a ciência, a arte, a filosofia, a civilização.

   Através desses símbolos, o homem é capaz de engendrar sistemas, explicações, proposições, esquemas, hipóteses, crenças, metáforas, a respeito de si próprio, da vida e do mundo. É como se eles fossem chaves capazes de abrir as celas de sua prisão. Ocorre, porém, que, embora muitas dessas chaves girem em suas fechaduras, as portas efetivamente não se abrem ou, quando o fazem, levam-no para outra cela, onde outra porta está fechada. Mas essas portas são apenas símbolos.
  Talvez também este imenso esforço que o homem faz para deixar fisicamente o planeta, lançando-se em direção ao macrocosmo, ou mergulhando cada vez mais no microcosmo, através do imenso acervo tecnológico que ele febrilmente aprimora, talvez isso, essas ações que movem o mundo, apenas simbolizem a incapacidade de deixar sua prisão interior. Se o homem está condenado a ser livre, essa liberdade se faz dentro de seus limites. E é nesse interior limitado que ele inventa todas as transcendências, às quais se apega como se verdades fossem. Todas, porém, incapazes de mudar-lhe a mera humanidade. E ele sabe disso.

  Hannah Arendt[7] refere-se à Terra como “a própria quintessência da condição humana”. Em outras palavras ela diz o mesmo que a citação de Huxley, entendendo-se a palavra mundo, no trecho a seguir, como aquilo que o homem cria:

   O mundo separa a existência do homem de todo o ambiente meramente animal; mas a vida, em si, permanece fora deste mundo artificial, e através da vida o homem permanece ligado a todos os organismos vivos.

 Prossegue com a observação que antecipava a realidade de hoje (lembrando que o texto é de 1958):

   O mesmo desejo de fugir da prisão terrena manifesta-se na tentativa de criar a vida humana numa proveta... a fim de produzir seres humanos e alterar-lhes a forma e a função.
   Esta via de fuga, através das trilhas da biologia, prossegue hoje nos meandros da decifração do genoma humano, das técnicas da engenharia genética e da clonagem. Recursos extraordinários, nem por isso suficientes para satisfazer a insaciável vontade que tem o homem de querer mais, estar além de si, ter poder.

   Ter poder – este outro artifício de que ele se vale para atribuir valor a si próprio; valor que, no fundo, questiona. Ter poder significa prevalecer. Sobre quem, ou o quê? Sobre a vontade do outro (o poder tem algo de antropofágico) e sobre a natureza: o poder de controlá-la, como se isto pudesse afastá-lo de seu temor maior, e que ela impõe de modo inexorável, ou seja, o temor da morte.

   Quando a ciência, produtora de tecnologia, e as disputas inevitáveis pela busca de poder (ao nível dos indivíduos ou dos Estados) são colocadas lado a lado, forma-se uma ligação covalente. A ciência não é neutra. Ela não busca apenas atender à curiosidade humana pelo saber; ela não quer apenas fornecer uma explicação clara e lógica dos fenômenos da natureza. Ela quer também conceder poder ao homem.

   A releitura do excerto em epígrafe mostra que há cinqüenta anos, e muito antes disso, já era clara a “rebelião” do homem contra existência humana tal como ela é nos seus limites. O humano, meramente humano, ser finito e que tem no morrer sua única e indiscutível certeza, parece tornar-se cada vez mais um obstáculo a ser transposto. Como alguém que quer saltar por cima de si próprio. Pelo menos, para o homem ocidental, assim é.  Esse homem herdeiro de Platão, que busca uma finalidade para o existir e uma causa primeira para o universo.

   Uma das ilusões que a autoconsciência proporciona é a de que, ao se ver, o homem se coloca distanciado, ou alienado da natureza, e arroga a si um lugar especial. Assim - dizem alguns filósofos, os religiosos, cientistas, iluminados, avatares, curiosos e charlatães – o homem, pelo progresso, alcançará, inevitavelmente, a luz, a plenitude, o fim da história, o nirvana, o céu, a sociedade sem classes, a reunião de todas as forças numa teoria única, a partícula última num universo feito de cordas elegantes... ao gosto e idiossincrasias de cada um.

   Hannah Arendt, embora não duvide que o homem venha a adquirir a capacidade para suplantar o obstáculo e transformar-se (em quê?), também não duvida de que tal capacidade pode permitir-lhe sua própria destruição.

   Quanto a isto, as reflexões de John Gray[8], apresentadas adiante, a propósito da capacidade humana, através da biotecnologia genética hoje disponível, em poder controlar seu destino genético e alterar o cerne da natureza humana, são lúcidas, mas inquietantes:

   A idéia de a humanidade tomar seu destino nas próprias mãos somente faz sentido se atribuirmos consciência e propósito à espécie; mas a descoberta de Darwin foi que as espécies são apenas correntes na flutuação aleatória dos genes. A idéias de que a humanidade possa moldar seu futuro presume que esteja isenta dessa verdade.

   Parece factível que ao longo do próximo século a natureza humana seja cientificamente remodelada. Se assim for, será feito ao acaso como resultado final de lutas travadas no terreno sombrio onde os grandes negócios, o crime organizado e as faces ocultas dos governos competem pelo controle. Se a espécie humana passar por uma reengenharia, não há de ser porque a humanidade, atuando como um deus, terá assumido o controle de seu destino. Será uma outra guinada no destino do homem.

      Se existe alguma coisa certa sobre este século, é esta: o poder conferido à “humanidade” pelas novas tecnologias será usado para cometer crimes atrozes contra ela. Se a clonagem de seres humanos tornar-se possível, serão produzidos soldados nos quais as emoções humanas normais estarão podadas ou ausentes. A engenharia genética pode permitir que as doenças da velhice sejam erradicadas. Ao mesmo tempo, é provável que venha a ser a tecnologia predileta em futuros genocídios.

   O texto de Gray, sem dúvida sombrio, faz ressaltar a importância da observação de Hannah Arendt de que essas questões não podem ser decididas por cientistas nem por políticos profissionais. Quem o fará?

   Haverá esse tempo? Ainda que o avanço científico e tecnológico nos últimos cem anos tenha sido absolutamente assombroso, fornecendo aos seres humanos recursos absolutamente impensáveis antes, a velocidade com ocorreram e continuam a ocorrer parece incompatível com a capacidade humana em absorvê-los quanto ao seu entendimento.

   Como a velocidade da ação humana é quase sempre inibidora da capacidade de se refletir sobre ela, vê-se hoje que, a par da imensa facilidade de se “navegar” no mundo virtual oferecido pela rede cibernética e de se colher informações em volume ilimitado, persiste a interrogação em saber se tal disponibilidade resulta em mais conforto para o ser humano. Entenda-se aqui conforto como bem estar psíquico, equilíbrio, aquisição de saber (o que é distinto de aquisição de informação), participação solidária, capacidade de contribuir para uma sociedade mais justa e menos violenta.

   Não se trata de ser contra essas aquisições tecnológicas, até porque elas são irreversíveis e se colam cada vez mais ao ser humano, e também porque, sem dúvida, elas permitem imensos benefícios para o homem. Trata-se de saber se é possível modular e harmonizar essa tecnologia àquilo que o homem tem como particularidade única, pelo menos neste planeta, ou seja, sua autoconsciência, sua capacidade de reflexão e escolha. É uma tarefa árdua para os pensadores contemporâneos – os que se propõem a pensar o homem naquilo que lhe é próprio: a capacidade de pensar. Se isto não for conseguido, estaremos na situação descrita por Umberto Galimberti[9].

   A técnica, em sua expressão moderna, se torna esse horizonte último a partir do qual se desvelam todos os campos da experiência. Não mais a experiência que, reiterada, estabelece o procedimento técnico, mas a técnica como condição que decide o modo de fazer experiência. Aí assistimos a uma transformação da subjetividade: não mais o homem como sujeito e a técnica como instrumento à sua disposição, mas a técnica que dispõe da natureza como um fundo de reserva e o homem como um seu funcionário.

   É sobretudo imprescindível pensar a ciência e avaliar seu vínculos com o poder instituído - o poder dos governos e empresas - e com a necessidade de poder do homem, com a visão do homem ocidental que, através da conquista de poder, se põe ao encalço da finalidade do mundo, da causa única, do progresso visto como ascese. Visão marcadamente religiosa.

   A ciência é hoje a religião do mundo. Ao conferir à ciência o status de reveladora da verdade, com bases em princípios que ela própria estabeleceu como válidos,o que se faz é apenas uma substituição de religiões.

   Buscam hoje os cientistas com ansiedade crescente a partícula fundamental do universo e uma equação que expresse a teoria do campo unificado. A esse respeito escreveu Sir Hermann Brondi[10] – astrofísico do King’s College – cético quanto à utilidade deste conceito:

...a contra-argumentação mais comum ao meu ceticismo é a de que devemos confiar na orientação proporcionada por um suposto conceito de “beleza matemática”.  A experiência mostra que embora alguns teóricos possam encontrar utilidade heurística nesse conceito, não poderão eles reunir o consenso dos demais a esse respeito... essa é a razão do fracasso de Einstein e de outros nas formulações teóricas sobre o campo unificado... no meu modo de ver, talvez pouco sensível ao significado da beleza matemática, o conceito parece insignificante e arbitrário, por depender de que alguém invente uma notação concisa, ou de que se possa aduzir uma similaridade com um campo matemático previamente estabelecido... excluir o desconhecido como um todo, como pretendem a “teoria do campo unificado” ou a “equação global”, é inútil e carece de significação científica.

   A descoberta (acidental, diga-se) da radiação de fundo, em 1965 por Penzias e Wilson, deu à teoria do big bang o selo de legitimação de grande e definitiva “verdade” sobre a origem do universo. A teoria do universo estacionário, proposta entre outros por Sir Fred Hoyle, ganhou o caminho do desterro. Mas hoje o big bang, ideia que recende a criacionismo, tornou-se de novo uma teoria que se questiona, pois já não representa o início; antes deles existiria um multiverso, seja lá o que isso signifique.

   Em fins de 2009 a Scientific American Brasil[11]  trazia como matéria de destaque artigos sobre origens (do universo, da mente, da vida na Terra, entre outros) – sempre a busca pelas origens, pela causa pela primeira... “cientistas fecham o cerco sobre o derradeiro processo que criaram e deram forma ao Cosmos”, dizia uma das chamadas. O mais provável é que esse cerco nunca se feche. A estrutura do cérebro humano permite-lhe ver e pensar o universo tão somente de acordo com essa estrutura, não quer dizer que o universo possa estar todo contido nessa concepção. Não há como conhecer o universo em si. Se isto soa kantiano, paciência.

   A verdade na ciência tem também seu quinze minutos de fama. Quanto às partículas fundamentais, hoje são as cordas – já criticadas- amanhã poderão ser as madeiras, os metais, a percussão. A orquestra da ciência ainda não encontrou tonalidades, ritmo, harmonias, nem mesmo melodias, capazes de tornar a pretensa sinfonia da verdade universal uma peça inteligível.

   A humanidade tem que olhar sem medo para o fato de que a finitude faz parte do existir do homem, e até lhe dá dignidade. Somente nos vendo finitos poderemos ser generosos. Pensar que o homem possa alcançar a infinitude é apenas soberba e leva à destruição.

    Assim, para os para os meramente mortais, que no curto lapso de suas existências apenas pretendem usufruir dos belos e breves instantes da vida, é preferível atender à reflexão de Camus[12]:

   Julgar se a vida merece ou não ser vivida é responder a uma questão fundamental da filosofia. O resto, se o mundo tem três dimensões, se o espírito tem nove ou doze categorias, vem depois. São apenas jogos... Galileu, que possuía uma verdade científica importante, dela abjurou com a maior das facilidades deste mundo, logo que tal verdade pôs sua vida em perigo. Fez bem, em certo sentido. Essa verdade não valia a fogueira. Qual deles, a Terra ou o Sol, gira em redor do outro, é-nos profundamente indiferente. A bem dizer é um assunto fútil.


  

[1] - Arendt, H: A Condição Humana, p. 9. Ed. Forense Universitária, 10ª edição, 2008

[2] - Becker, E: A Negação da Morte, Ed. Nova Fronteira, 1976, p. 89

[3] - Fromm, E: A Arte de amar, Ed Itatiaia, p. 28

[4] - Arendt, H: Ib. p. 9

[5] - Becker, E: Ib. p 111

[6] - Huxley, A: Prefácio in Krishnamurti “A Primeira e Última liberdade”. Ed Cultrix, 1968, p.7

[7] - Arendt, H: ib. p. 10

[8] - Gray, J: Cachorros de Palha. Ed Record, 2ª edição, 2006, p.22 e 30

[9]- Galimberti, U: Psiche e Techne – O Homem na Idade da Técnica. Ed Paulus, 2006, p381

[10]- Brondi, H: “A tentação do conhecimento total”, in A Enciclopédia da Ignorância, Duncan & Weston Smith (org.). Ed. Universidade de Brasília, 1978, p 22

[11]- Scientific American Brasil, ano 8, nº 89, outubro 2009

[12]- Camus, A: O Mito de Sísifo. Ed. Livros do Brasil, p 17

 

 

 

 

ÓPERA E SUA ESTÉTICA


   “Ontem – vocês acreditarão? – ouvi pela vigésima vez a obra-prima de Bizet. Fiquei novamente até o fim, com suave devoção, novamente não pude fugir. Esse triunfo sobre minha impaciência me espanta. Como uma obra-prima assim aperfeiçoa! Tornamo-nos nós mesmos “obra-prima”. – Realmente, a cada vez que ouvi Carmen, eu parecia ser mais filósofo, melhor filósofo do que normalmente me creio: tornando-me tão indulgente, tão feliz, indiano, sedentário...”
  Todo esse entusiasmo é Nietzsche quem o expressa no início de O caso Wagner – um problema para músicos (1). E prossegue no mesmo tom, verve e jovial alegria, como se o sol do mediterrâneo estivesse a lhe banhar o rosto: “esta música me parece perfeita... é amável, não transpira... o que é bom é leve, tudo divino se move com pés delicados: primeira sentença de minha estética... esta música trata o ouvinte como pessoa inteligente e até como músico...” e logo inclui esta pequena reflexão: “já se percebeu que a música faz livre o espírito? que dá asas ao pensamento? que alguém se torna mais filósofo, quanto mais se torna músico?”
  É bem possível que seja assim. Por não depender da visão, como dependem a pintura e a escultura; por não depender de um fluxo organizado e coerente de palavras, como dependem a literatura e a poesia, mas fornecendo ao ouvinte, para sensibilizá-lo, um fluxo de sons que não precisa ser transformado em palavras ou traduzido em cores, a música deixa-o como que flutuante, livre da “atração gravitacional” sentida nas outras formas de arte e que atrai para o concreto, para o delineado, para o definido. É como se a música deixasse o ouvinte num espaço-tempo em que houvesse tempo, mas não espaço.
  A rara propriedade que tem a música, quando fechamos os olhos e nos deixamos levar por ela, de nos conduzir ao mais profundo do nosso interior, fronteira do desconhecido, nunca alcançável, instiga, angustia, por vezes, deixa-nos à busca de uma epifania e quase nos obriga à investigação disso que somos e não sabemos. Esta propriedade, talvez seja a ela que Nietzsche se refira ao dizer que a música nos torna mais filósofos.
  Mas, voltando ao Caso Wagner, nas páginas que se seguem Nietzsche desencadeia uma devastadora crítica a Richard Wagner (1813 – 1883), a que chama – com sua fluência irada, hiperbólica, mas divertida e até leve – “o artista da decadência – eis a palavra.” E agora, em sentido oposto aos elogios à luminosidade da música de Georges Bizet (1838 – 1875), não poupa o autor da tetralogia do anel: “ele torna doente aquilo no que toca – ele tornou a música doente... sinto o desejo de abrir um pouco a janela. Ar! Mais ar!... Wagner aumenta exaustão: por isso atrai os débeis e exaustos... em sua arte se encontra misturado, da maneira mais sedutora, aquilo que o mundo hoje tem mais necessidade – os três grandes estimulantes dos exaustos: o elemento brutal, o artificial e o inocente (idiota)...” Sem dúvida uma mudança extraordinária para quem tanto reverenciou Wagner, como Nietzsche o fez em O nascimento da tragédia.
  Desloquemos de novo o eixo do texto. A bem dizer o texto ainda não encontrou um eixo. Nietzsche não esconde sua fascinação pela música, pela ópera de Bizet, tampouco seu desgosto com a música de Wagner, toda ela música para o palco, óperas, ou dramas musicais, como se quiser chamar. Ora, a ópera. Tem-se aqui um tipo de manifestação de arte onde as formas, coisas e artistas se misturam. Dará certo? Vejamos em outro parágrafo.
  A ópera exige música, ação teatral e texto poético. Ou seja, compositores, poetas, músicos, maestros, cantores, bailarinos, artistas plásticos, diretores de cenas, cenógrafos, figurinistas... um conjunto que acaba por reunir cinquenta, cem, duzentas pessoas, todas levando a tiracolo, como artistas, seus egos sensíveis. Em que resulta? Em espetáculos, às vezes magníficos, às vezes ridículos. Ópera? muito artificial, dizem uns – ora, arte é artificial; talvez queiram dizer superficial, mas também há graça na superfície; no fundo é que muitas vezes não há. Esteticamente frágil, dizem outros. Nem sempre, e como esses espetáculos são capazes de espelhar o humano, excessivamente humano desse ser escandalosamente excessivo que é o humano. Trazer à tona, superficializar, através do canto, o grito da vontade e do desejo que em nosso interior quase sempre jaz calado, produzir como que uma catarse, talvez essa seja uma das funções da ópera, que afinal descende da tragédia grega.
  Há pouco se disse que a música não precisa de palavras para se expressar e sensibilizar o ouvinte. “A música é a linguagem da emoção”, disse Wagner, ele mesmo. Mas a palavra também é. A palavra, quando enunciada, é som e, quando lida em silêncio, também, pois o cérebro a elabora como som interior. Um texto não é apenas uma sucessão de palavras dispostas coerentemente, de modo a expressar uma mensagem, uma informação, uma transposição de idéias daquele que o compõe para aquele que o recebe. Para que isto se dê, tem de haver no texto uma série de símbolos gráficos que representam pausas (. ; : ,), ênfases (!), dúvidas (?), silêncios (...) , etc. ; eles permitem que ao texto sejam dadas variações sonoras - ainda que lido em silêncio, como dito, pois a mente as compreende e as aplica em sua sonoridade interior – que são como que uma “protomúsica”. É essa “protomúsica” que dá acabamento final ao texto, lhe confere coesão interna e contribui significativamente para lhe estabelecer o sentido.
  Lancemos mão dos esclarecimentos de José Miguel Winsnik em sua obra O som e o sentido (2). Diz ele: “o som é um objeto subjetivo, que está dentro e fora, não pode ser tocado diretamente, mas nos toca com uma enorme precisão. As suas propriedades ditas dinamogênicas tornam-se assim demoníacas (o seu poder, invasivo e às vezes incontrolável, é envolvente, apaixonante e aterrorizante). Entre os objetos físicos, o som é o que mais se presta à criação de metafísicas. As mais diferentes concepções do mundo, do cosmos, que pensam a harmonia entre o visível e o invisível, entre o que se apresenta e o que permanece oculto, se constituem e se organizam através da música.”
  E, mais adiante, esta outra e importante observação: “a música, em sua história, é uma longa conversa entre o som (enquanto recorrência periódica, produção de constância) e o ruído (enquanto perturbação relativa da estabilidade, superposição de pulso complexo, irracional, defasado). Som e ruído não se opõem absolutamente na natureza: trata-se de um continuum, uma passagem gradativa que as culturas irão administrar, definindo no interior de cada uma qual a margem de separação entre as duas categorias (a música contemporânea é talvez aquela em que se tornou mais frágil e indecifrável o limiar dessa distinção).”
  Ora, tudo isso para dizer que a música e a palavra dão-se bem. Que há música na palavra. Quando falamos, cantamos, quase sem perceber; mas quando queremos acentuar nossa emoção e dizer tudo que as palavras podem expressar, aí cantamos mesmo, com todo o encanto que uma melodia pode nos oferecer.
  Por vezes, música e palavra ficam de tal forma amalgamadas em certas canções, que é difícil pensá-las em separado. Por exemplo, somente consigo percorrer a letra da canção “Carinhoso” cantando-a; e se ouço sua melodia, ouço-a de imediato com os versos fluindo junto. E, como se pretendia falar de ópera, o mesmo me ocorre com algumas árias mais conhecidas. Algumas se tornaram tão populares que acabaram por se desgastar, pelo menos aos meus ouvidos. Atualmente, Nessum dorma já é difícil de ouvir; perdeu seu drama. Mas a música de Puccini (1858 – 1924) tem mais efeitos do que drama. La Donna è mobile é vulgar, mas Verdi (1813 – 1901) a fez vulgar porque o contexto do drama assim pedia. E Verdi, com um toque de gênio, a reutiliza num contraponto tragicamente irônico em um dos momentos mais intensos da trama, tornando-a impactante.
  Então, de volta à ópera e ainda em busca de um eixo. Levando em conta, agora, que ruídos, sons, palavras e música se articulam com intimidade e que a música subjaz no interior das palavras, o que se há de concluir é uma obviedade: para o ser humano cantar – produzir som musical com o aparelho vocal – é uma ação naturalíssima e necessária.
  O canto humano pode expressar apenas uma melodia, ou pode expressar uma melodia com inserção de palavras. Já se sabe o que faz a música com essas palavras: intensifica a emoção. Do canto tribal ao gregoriano, do lied, da canção folclórica à cantata, do madrigal à ópera.
  A ópera, foi dito, é uma forma musical que se caracteriza pelo excessivo. Por isso é alvo de paixões – detestada por uns, amada por outros. Caracteriza-se pelo excessivo? Nem sempre. Por vezes ela atinge o cerne, o mais essencial do drama de maneira incomparável. Alguns exemplos: em D. Carlo (1868) de Verdi a grande ária de Filipe II, precedida de uma longa introdução orquestral com a lamentosa melodia do violoncelo, expressa a solidão do poder e a inutilidade deste perante nossa finitude de modo impressionante. Em Peter Grimes (1945) de Benjamin Britten (1913 – 1976) a solidão e a loucura são delineadas de maneira densa, impressiva, no monólogo do personagem- título quase ao final da ópera.
  Outro monólogo de tremenda força dramática conseguida através da música é o do protagonista em Boris Godounov (1870) de Moussorgsky (1839 – 1881), música que expressa a angústia causada pelo remorso de maneira inigualável.
  Em Tristão e Isolda (1865) de Wagner, no famoso dueto do segundo ato, o que o poema apresenta e a música eleva a uma sublimação arrebatadora é um questionamento filosófico que diz respeito às ilusões do dia, à verdade da noite, metáforas do amor e da morte; e à transcendência pela morte: “Assim, morrerás/ para que unidos/ fôssemos um só eternamente” (3). A despeito de Nietzsche, estamos aqui numa das culminâncias da arte da música.
  Interessante notar que nos exemplos citados estão os personagens em momentos de grande interiorização, estão refletindo sobre si próprios, mesmo em Tristão os dois buscam ser um, pela dissolução de seus eus, um no outro. Cenas pontuadas musicalmente por harmonias soturnas, fluxos melódicos lentos, silêncios eloqüentes. Tudo transmitindo ao espectador-ouvinte uma emoção somente atingida através da música; o texto, apenas, não causaria tanto impacto.
  Um dos livros clássicos sobre ópera é A ópera como drama (4) do musicólogo Joseph Kerman. Nesse estudo o autor questiona se a ópera como forma musical, como drama em música, é viável, se pode haver nessa forma musical consistência estética. E imediatamente responde ele que sim, dizendo: “das muitas atitudes parciais de hoje em dia para com a ópera, duas são mais insensatas: uma mantida pelos músicos, de que a ópera é uma forma menor de música, e uma mantida aparentemente por todas as demais pessoas, de que a ópera é uma forma menor de drama. Essas atitudes derivam de abordagens exclusivamente musical e exclusivamente literária da ópera... a ópera é, de forma excelente, a sua própria forma.” E faz duas citações que, em parte devem ser apresentadas. A primeira de T. S. Eliot (Poetry and drama): “é uma função de toda arte nos dar alguma percepção de ordem na vida, impondo a esta, por sua vez, uma ordem... parece-me que, mais além das emoções e dos motivos nomeáveis, classificáveis, de nossa vida consciente quando dirigida para a ação – aquela parte da vida que o drama em prosa é totalmente adequado para expressar – existe uma fímbria de extensão indefinida, de sentimento que só podemos detectar com o canto do olho... este âmbito peculiar da sensibilidade não pode ser expressado pela poesia dramática em seus momentos de maior intensidade. Em tais momentos tocamos a fronteira daqueles sentimentos que somente a música pode expressar.”
  A segunda citação é de Edward T. Cone (The old man’s toys: Verdi’s last operas): “em qualquer ópera podemos descobrir que as mensagens musicais e verbais parecem reforçar ou contradizer umas às outras; mas, num caso ou outro, devemos sempre nos apoiar na música como nosso guia em direção a um entendimento da concepção que o compositor faz do texto. É esta concepção, não o puro texto em si mesmo, que tem o poder de definir o significado final da obra.”
  Neste ponto talvez seja possível perceber o eixo deste texto, um tanto sinuoso. Ele se prende à questão feita por Kerman quanto à validade da ópera como forma artística, ela mesmo. Tem a ópera consistência estética, tem capacidade genuína de emocionar, surpreender e de até, em alguns momentos, permitir ao espectador-ouvinte vislumbrar o sublime em sua acepção artística? A reposta é sim. As palavras de Nietzsche, no início, já não dizem isso?
  Quando se assiste a uma ópera, é preciso estar em sintonia com suas características próprias, sua forma de expressão como arte, suas regras, suas limitações, exageros, convenções, contexto histórico em que foram compostas, etc. E deixar-se levar pela música, pois é ela, em última instância, que irá modular e definir o equilíbrio dessa manifestação de arte complexa. E, por ser arte, é um mundo de recriação do mundo, pairando na mente, além dos sentidos, ainda que por eles veiculados, formando um vasto e impalpável painel de emoção, surpresa e espanto que, por breves momentos, pode ser capaz de satisfazer o humano excessivo que há em cada um.



1 – NIETZSCHE, F. O Caso Wagner. Nietzsche contra Wagner. São Paulo, Editora Companhia das Letras, 2003, p. 11-16.
2 – WISNICK, J. M. O Som e o Sentido. São Paulo, Editora Companhia das Letras,  1989, p 25 – 27,.
3 – NEWMAN, E. História das Grandes Óperas. Rio de Janeiro, vol. 1. Editora Globo,  1957, p. 98.
4 – KERMAN, J. A Ópera como Drama. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor. 1999, p.20 – 30.

 

 

 

 

Considerações
Ópera e sua estética

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