Olhares
Para Mary,
“Mas a vida, a vida, a vida, a vida só é possível reinventada.”
Cecília Meirelles
Manhã
A madrugada agoniza
Nas raias sanguíneas dos meus olhos.
Da noite em claro
Resta o silêncio.
Os amores sonhados,
Para sempre perdidos,
De novo adormecem
No fundo do orvalho
Bordado no rosto.
E, mais uma vez, amanhece.
Clown
Minha simples presença
É complexa e me escapa.
A língua que uso,
Com ela não me traduzo.
Por qualquer ângulo que me veja,
Não me sei agudo ou obtuso.
Sigo em frente no descompasso,
Achego-me, assusto-me e me afasto.
Tento pirouettes
E tropeço no silêncio, que é tão vasto.
Entro em cena por acaso,
Não sabendo o que falar.
Nu, busco-me em vão
No prazer de outro olhar.
Mas encontro um prumo sem fio,
Na ilusão a oscilar.
Sereia
Então, quando te vi
(e foi um brevíssimo momento),
Julguei ter visto
Nos cantos dos teus olhos
O irresistível tom do encantamento.
Nada mais temi
E ao mar me fiz.
Não pude alcançar-te, porém
(bem te sabia inexistente).
Perdi-me como quis.
Que importa...
Tua visão, guardei-a
E para sempre fui feliz.
Voo
Olho o mundo
Com assustados olhos de pássaro,
E passo, e voo...
Quanto peso os homens suportam
Para manter aparências.
E tudo tão à toa.
Paciência...
Leve, leve é o adejar
Do sorriso que me leva.
Ave!
Bailarino, solto-me no azul
Sinuosamente
E espero...
Que outros venham também,
Senão agora, um dia,
Na hora plena de suas vidas,
Amém!
Andante
Meus dedos percorrem
Muito lentamente
Teu dorso nu, ao som
Do primeiro quarteto de Borodin.
As cordas entrelaçadas
Fazem do quarto
Uma caixinha de música
E de segredos sem fim.
Também se entrelaçam
Nossas pernas no centro do leito,
E buscam meus lábios o centro do mundo
No fundo de teus lábios carmesim.
O andante suave
Acolhe nosso movimento,
Ondulando sobre a pele arrepiada,
Como borboletas num jardim.
Na janela a brisa leve
Acaricia as folhas da avenca
Plantada num xaxim.
Algaravia
Aos poucos as palavras
Vão abrindo os olhos.
Lentas, sucessivas,
Estudam o terreno
E não revelam sentido.
Serpeiam, circundam,
Se buscam, se apoiam, se opõem,
Não sabem o que querem,
Ou sabem e não querem dizer.
Respiram, buscam no fundo
Coragem, hesitam, não dão
O braço a torcer e, ladinas,
Retiram-se súbitas, desfazem
A frase e põem tudo a perder.
Mas retornam, obrigadas.
Primeiro as mais frágeis
Que nada insinuam,
Nada esclarecem,
Compondo um texto
De todo vulgar.
Depois as outras, as outras,
Oh, as outras não vêm!
Recusam-se as sofisticadas
Por não se misturarem
Com as cotidianas.
Não participam as filosóficas
De um tema sem lustro.
Raso, sem lastro.
As que se dizem politizadas
Permanecem em estado de greve...
As anarquistas se dispersam
Em fonemas
E com tanto absurdo
Não se cria um poema.
Ameno, tão simples,
Tão doce, pobrezinho,
Franciscano...
E como fica difícil dizer:
Eu te amo.
Sonata nº 6
Erro ao longo da vida, eclipsado.
Busco-me em outro e me vejo
À borda de um poço debruçado.
No fundo há olhos que ameaçam
E são meus e não me sabem
Mas não os quero perder,
Não me quero a mim.
Quero no amor do outro,
Estar e ser ignorado.
Quero-me lampejos
Que em outros olhos se desfaçam.
Quero-me vago sentimento,
Perfume da noite indecifrado
Que amenize o cansaço dos que passam.
Noite
Entre o nada e o nada
A vida é uma ponte estreita.
Sigo.
Acima, a lua pela metade –
O olho dissimulado de um ciclope
Espreita.
Tua negra boca escancarada,
Ciclope, a mim não ameaça.
Desdenho-te.
Enquanto sigo, sou,
Enquanto sou, sou tudo.
Sonho,
Estendo-me além dos horizontes
Que imagino.
E tudo me pertence –
A lua inteira, as estrelas
E as ninfas todas
Que por aqui passeiam.
Para fazer-te cego de ciúmes
Vou deitar-me com elas,
Nuas e alegres
À beira do abismo.
Porque, ciclope, digo-te isto:
Inútil é ser eterno.
Amor só há à beira do abismo.
Eu, que morro,
Existo.
Outono
Noite.
Só ela no leito
Sob a angústia do lençol.
Na pele das mãos
O inverno se revela,
No imo do corpo
Ainda é verão.
Os olhos se fecham, à procura.
Entre o sono e a vigília
Repousa o mágico espelho.
– Diz-me:
Solidão é o que resta?
Não diz que sim o silêncio,
Nem que não...
Ela jaz em inerte sofrer.
Os olhos se abrem, ainda à procura,
E ninguém há para encontrá-los.
Pelo corpo desnudo as mãos ansiosas
Buscam outras
Que o corpo lhe buscassem.
Sob o lençol da angústia
Folhas amarelas espalham-se
No solo fértil, abandonado.
E no silêncio da vida inconclusa
Estende-se a noite
Do coração torturado.
Equilibrista
Um fio extenso
Suspenso sobre o mundo:
A vida.
Em cada passo certo
A incerteza do próximo,
Alongando o risco
Que, contraposto à sapatilha,
Impede a queda presumida.
O espaço é livre,
Não há escolha, porém.
Só o fascínio do medo irresistível.
Ir sobre o exato limite imposto,
Eis o jogo e o ato.
Tudo por nada,
Ou pelo meramente suposto.
Estendem-se os braços
Na pretensão do equilíbrio.
Sob a luz das estrelas
Segue a imitação de um pássaro
Preso à própria crucifixição.
...E no fundo repousa
O mundo indiferente,
Alheio aos passos inúteis da paixão.
Caleidoscópio
O fim da tarde submerge,
Tremulando no silêncio
Das cores indecisas.
A última será?
Trêmulo estarei na última tarde,
Como sempre estive
Todas as tardes e todas as manhãs
De todos os dias,
Em busca das formas sucedâneas.
Estarei como sempre absorto
No giro perpétuo do círculo mágico:
Rostos, amores, sorrisos,
medos, enigmas...
Nada tenho, nada sei,
Mas nunca é tarde.
Na tarde que morre
Quero não morrer,
Só pairar
Para sempre indeciso
Nos cambiantes reflexos das cores
Que inundam de vida o olhar.
Inominado 13
Na praça vazia,
Aos pés da grande estátua equestre,
As flores da homenagem
Murcharam ao sol...
Não, não importa a glória.
Não somos grandes,
Não somos fortes,
Não somos pétreos.
Somos pétalas,
Ainda que não queiramos,
Delicadas e transitórias.
Inominado 14
Lá fora, uma inesperada
Algazarra de crianças.
Julgo ouvir uma cantiga.
Uma ciranda?
Não...
Dor!
Tenho a alma da cor
De uma foto antiga.
Minha vida, por onde anda?
Infância
A velha casa da vila
Era um castelo com o reboco caído,
Duas salas, dois quartos,
Rangentes tábuas corridas,
Aranhas, segredos no porão
E os sonhos de toda a vida.
À noite a avó catava o feijão,
Punha a carne em vinha-d'alhos
E cantava uma cantiga
Que dizia de uma velha
Que tinha um gato,
Um cachorro e um pinto
Debaixo da cama, tinha.
Aos domingos o avô fazia doces,
Dava banho nas cadelas,
Falava mal do governo
E colocava Galli-Curci na victrola.
Gilda, entre flautas, suspirava...
Il mio cor ancor palpita.
O tio solteirão lia o jornal
Com uma lupa dourada.
Contava do cometa de 1910,
Do naufrágio de 1912,
Dos bichos do tempo
De antes da história
E os olhos do menino se arregalavam.
A avó, hoje, já não anda
E espera nas manhãs sem sol.
O avô, que era espírita
Desencarnou à noitinha,
Em busca do indecifrável.
O tio, ateu e simplório,
Apenas morreu...
Olho-me
Na grande sala deste apartamento
De paredes brancas e lisas.
Não é um castelo.
Nada há debaixo da cama
E como brilham as tábuas corridas.
Espero o sol no amanhecer,
Sorrindo dos meus olhos marejados,
Que ainda hoje insistem em ver
Aquela magia tão perdida,
E sigo pelos dias, flutuante,
Abraçado às velhas tábuas rangentes,
Para sempre salvação da minha vida.
Inominado 15
Sobre o dentro de nós
Palavras
E palavras
Têm o peso inútil
Do que não é possível.
O que é em nós
Não tem nome
E resta no fundo,
Indizível.
Prelúdio
La fora, na quase manhã,
A chuva rabisca as folhas.
Fusas líquidas
Pululam nos vidros da janela
E escorrem semibreves,
Inseminando o olhar.
O ruído, protomúsica delicada,
Preenche o silêncio
Sem feri-lo.
Os sentidos se desprendem do corpo
E nadam no quarto
Como peixes distraídos.
Ouve-se o cheiro da terra,
Aspiram-se as cores
Que estremunham na penumbra,
A visão tateia os móveis,
A pele saboreia o frio.
E o eterno se vislumbra
Num momento fugaz,
Quando nada se observa
E tudo no indefinido
Se desfaz.
Inominado 16
Não ter, porém querer
E temer a hora
Em que se há de ter.
De frente não se vê o verso
Onde corre o risco do prazer.
Faz-se o bordado pelo avesso,
Cobrindo o traço,
Que não se deve perceber.
Ocultação
Olhares felinos
Tocam-se, brevíssimos, no ar
E se escondem, fitando longe,
Na dissimulada linha do horizonte,
A intimidade
Dos segredos adivinhados.
As pupilas, que ardem, impassíveis,
Os guardam no fundo,
Levemente doces,
Levemente amargos,
Despidos
E não revelados.
Inominado 17
Num canto da calçada
A pobre negra
Dá o peito
À criança magra.
Os carros seguem
Sobre as cruzes de asfalto.
A pressa leva os passantes
Pelos mistérios de suas vias.
O sol se estende sobre todos.
Na esquina
O cego do saxofone
Toca Fascinação.
E, como um súbito eclipse,
A profunda tristeza do mundo
Tudo em mim silencia.
Em silêncio
Parto,
E ao partir
Nada quero dizer,
Nem quero que saibas
Que parto ferido
Por saber
Que não partiria
Se soubesse
Que, ao me saberes perdido,
Talvez tivesses
Teu coração partido.
Zero
Dispo-me,
Recuso-me,
Despenso-me,
Desfaço-me dos olhares
Com os quais me invento
Para inventar o mundo.
Quem sabe,
Na profunda cegueria
A luz então se faça.
Que isto seja escrito, ou não,
Tanto faz.
As estrelas são pontos na distância
E nós, os homens,
Apenas conseguimos exibir
Nossa absoluta desimportância.
Credo
Não creio,
É um modo de ver.
Em nada difiro.
As limitações do meu corpo
Insistem em me dizer.
Meu quinhão de amargura,
De paixão pela vida
E compaixão pelo outro
É idêntico ao de todos,
Creio.
Não creio.
É só uma característica,
Como os narizes platirrinos
Ou os crânios dolicocéfalos.
Não há necessidade
De se dar ao fato
Maior atenção.
Devaneio
Deixar-se ir
Como brancos pássaros
Sobre o mar.
Guardar para si
Apenas o olhar
E flutuar na brisa
Como folha
Solta e imprecisa.
Ver o que além da visão
Se esconde.
Não rir, nem chorar,
Não ficar, nem partir,
Ser e não pensar,
Deixar de ser
Para existir.
Fim
. Marque-se o início
Com o ponto final
Arme-se a trama
Com os usuais signos desconexos
Pespontem-se sonhos e vigílias
Com vírgulas e reticências
Exclamem-se as certezas
Do amor incerto
Com a ansiedade das interrogações
E se faz a vida
E a luz não se faz
Tudo flui
No curso das aparências
Envelhece no presente
Sem se dar a conhecer
E seguindo a curva do universo
Volta ao final antes do início
No absoluto silêncio
Do verbo inexistente
Encontro
Sonho com o mar
E descrevê-lo não sei.
Repousa o sonho
No silêncio interior da palavra.
Empenho-me em falar-te,
Busco-me e te procuro
No fundo deste oceano.
Sonho que me acho
E te encontro,
Pelo menos esta vez,
Quando teus olhos percorrem
O silêncio destes versos,
E então me vês.
XII
Na parede nua
O despudor do relógio oito,
Infinito vertical
Com os ponteiros eretos,
Partindo a noite
Em metades sem gozo.
Penetra-me o tempo
E não me fecunda.
Limito-me a ver,
Sabendo-me cego.
Defronto-me comigo,
Face a face com o nada.
Isto que sou,
Não sei o que é
E nada sei
Desta estranheza
Que me cerca.
A noite em metades
É um ponto em suspenso
Onde, desolado,
Apenas ouço o silêncio.
Ângelus
Seis horas da tarde rubra,
Sombras alongadas,
Ruas coalhadas,
Espasmos do fim do dia
Descompassado.
Lixo, gente,
Tanta pressa, tanta fuga.
Ricos e pobres
Em inúteis movimentos
Brownianos.
Da loja de discos
A Ave-Maria de Gounod
Anuncia mais uma noite
De desesperança plena.
O ar sufoca
E nada rima
Na imunda cidade imensa.
Vênus no horizonte
Brilha absurdo
E os olhos rubros de cola
Dos miseráveis das calçadas
Dizem que é tarde,
É tarde, é tão tarde...
Tao
Não me busco,
Percorro-me
Por caminhos indefinidos.
Sou, sem encontrar-me,
Quando não me sei.
Os caminhos se estendem
E são um.
Quantos somos
Quando amamos?
Muitos, todos,
Nenhum.
Quando me vês,
Me vejo,
Quando te vejo,
Te vês.
Poesia
Versos
Sobre
Versos
Sobre
Versos
Indecifráveis.
A visão das palavras
Constrói mistérios
Sob os olhos ocultos.
O poema nasce
Quando é lido.
Quem o lê, o recria
E o que sente
É o pulsar
De sua própria poesia.
Inominado 18
As ruas se cruzam.
Nós também,
Sem nos olharmos.
Nossos rostos estão vincados,
Nossos ombros vergados
Ao peso de mais um dia.
Tanta coisa necessária,
Tanta coisa fútil.
As ruas são vias amargas
Por onde levamos nossa paixão
Cotidiana e inútil.
Círculos
A lua.
Em torno, um halo azul.
Meus olhos,
Halos senis em torno,
Fitam a aura do mistério.
No jardim, a brisa
E o aroma de jasmins.
Em breve à terra retorno
E, quem sabe, serei
O aroma do jardim.
Outros olhos
Fitarão a lua
Sempre a circundar a Terra,
Sempre circundando o Sol.
E a vida se faz eterna,
Quando se imagina poder vê-la
De um ponto indefinido,
Sem vivê-la.
Inominado 19
Quantos serão
Meus dias contados?
Inquieto-me -
São muitos já
E ainda tão poucos.
Sempre haverão de faltar.
A compreensão do mundo
Não cabe
Na exiguidade dos dias.
Que pena!
No fim, ainda que tenha amado,
E por muito que tenha procurado,
Nada saberei.
Verde mar
Hotel em Fortaleza
quinto andar
frente para o mar
lá fora estendido
verde rompido
pelas ferruginosas pontas
de cargueiros naufragados
onde jaz meu coração
perguntam meus olhos marejados
bêbados deslizando lá
e aqui dentro do quarto
desta tarde quase noite
ainda rubra
ainda túrgida
do vinho bebido a dois
corpos há pouco esparramados
de suor banhados
nas salivas um e outro
somados sobre o leito
um sobre o outro
até o tudo-nada
deste mar aqui lá fora
bravio e verde
mais verde agora
este oceano de amor por ela
adormecida e nua
coberta apenas
por meu olhar enternecido
por deixar-me ela só ela
repousar em seu remanso
eu barco abandonado
destroço abatido
sem jamais ter ido
aonde não sei
como veem meus olhos
meu corpo nu refletido
soluçante por trás da janela
a fitar o mar estendido
verde roído pela ferrugem
da minha desesperança.
Segredo
É insustentável
Olhar outro olhar,
Senão por breve instante.
Querer ver o que
Além do olhar se esconde
É burlar a regra mais temida.
Dentro o que há não se sabe,
Mas é por demais triste
Para ser visto.
Somente cegos
Podemos nos suportar.
Agosto
Final de tarde,
O corpo estendido no sofá,
Objetos dissolvidos na penumbra.
A sonatina de Ravel
Permeia o silêncio.
Nada a fazer senão respirar.
Por mais que se espere,
Ninguém virá.
Entre o sim e o não
Pende a vida à toa,
Sempre por um triz.
Os dedos percorrem a pele,
As notas chuviscam cristalinas.
No início da noite em agosto
É difícil ser feliz.
Khayyam
Estou só, amigo, todos estamos.
Bebamos nosso vinho sem alarde.
Que no silêncio paire apenas
A indefinição do olhar.
Busquemos em nossas taças a verdade,
Qualquer, se há, no fundo irrevelável,
Onde repousa o coração da divindade.
Luar
E as mãos
só elas trêmulas
quase denunciam o desejo
de percorrer o corpo
ali repousado alheio
desnudado pelos olhos
dissimuladamente vagos
de sentir a tepidez
da pele então arrepiada
de se perder nos pelos
quem sabe fartos
e no segredo então
quem sabe concedido
Ah
é só o desejo e o tremor
por pensar o desejo
e saber que o momento
se esvai impossível
no enigma que exaspera
o silêncio de seus olhos
que me fitam sossegados
e suas mãos abandonadas
sobre o colo e sobre elas
o olhar meu fixado
em busca de um leve
disfarçado tremor também
que me iluminasse
rosto e alma
como uma lua súbita
gigantesca e clara.
Cinelândia
Três cinemas moribundos.
Pombos, migalhas de gente
Espalhadas -
Mendigos, travestis,
Pivetes, leitores da Bíblia,
Operários, aposentados,
Crianças esfomeadas cirandando
O monumento positivista,
Formigas da classe mediana,
Todas de calças jeans,
Sumindo na boca do metrô.
Verão. A raça humana
Do mundo terceiro
Exposta à solar agonia.
E o Maestro Carlos Gomes
Rege a sua protofonia.
Teorema
Nesta manhã de luz desfeita
Meu rosto cotidiano
Olha-me do espelho
E, sem qualquer proposição,
demonstra-me a incerteza:
Tenho nome,
Não tenho, nem essência.
Quando me vejo,
O que vejo não conheço,
Quando penso conhecer-me,
Sei que não me vejo.
Schönberg e entropia
Meus olhos percorrem
O teto enigmático do quarto.
E descem pelo silêncio
Amarelo das paredes.
Deitado convalesço desde que nasci.
As cinzas do dia atravessam a janela
E trazem as vozes do medo -
Frios sussurros,
As agonias do mundo,
Os fios rubros do sofrer...
Late um cão,
Ruge um motor,
Passantes discutem
Numa língua aglutinante,
Bate-me o coração.
O efeito Doppler altera o sibilar
De uma sirene evanescente -
Uma ambulância, talvez.
Alguém na maca
Fita a própria perplexidade
No teto branco...
Talvez a polícia
Alguém vai preso
como eu estou.
Algemas invisíveis, solidíssimas
Atam-me os pulsos abertos
A deixar escorrer
O sangue de amores tresloucados.
E tudo é passado.
Anoitece no teto,
As imagens sucumbem,
A dispersão segue seu curso.
Do rádio de cabeceira
Em frequência modulada
Escorrem cordas pré-dodecafônicas.
Um homem e uma mulher
Inutilmente grávida
Caminham pelo bosque.
O respirar não me transfigura.
Respiro, respiro,
Deitado desde que nasci.
Não tenho nome, nem heterônimos.
Inspiro, expiro, esqueço,
Espero a inevitável dissolvência,
Sorrio e desfaleço.
Só
Entardece.
Vou mar a dentro.
O verde silencioso frio
Envolve-me.
Lentamente desço,
Em busca
Do repouso nas areias.
Danço despido,
Sinuosamente.
Os amores perdidos
Posso esquecê-los.
Quero apenas
A quietude definitiva
Do barco naufragado
Que adormece ali,
Além, no fundo,
No fim
Do imenso oceano
Que há em mim.
Visita à exposição Dalí
O femíneo minotauro
Longilíneo
De garras delicadas
Das órbitas
Retirou-me os olhos
E pô-los a correr
Como bolinhas de gude
Em ziguezagues
Pelas galerias.
E lá se foram
Planetóides desorbitados
Qual ovos fritos
Em busca do prato
Ricocheteando entre o concreto
E o abstrato.
Esculturas verdes sinuosas
Telas - armadilhas
Vênus - gavetas
Narizes - orelhas
Falos de Murano.
Por que não?
Porque sim.
Quando aqui o dia começa,
Começa a noite em Pequim.
Em frente à Mulher
Subindo a escada
O casal de adolescentes
Fundiu-se num beijo primal
Com línguas percucientes.
Ele com uma sacola às costas,
Ela com óculos de grau.
E depois saíram de mãos dadas.
Lúcidos - alucinados
Desceram os olhos as escadas,
Cumprimentaram o rinoceronte
E reencontraram-me, dono deles,
Na calçada/
Pequenos sinos esvoaçantes
Badalaram borboletas
Circundando-me a cabeça.
O tempo extinguiu-se
Na ampulheta sem areia.
Por que não?
Porque sim.
Nada sei, se penso em mim.
Logo, logo a lua vai nascer
E quando aqui chegar a noite
Na China acordaria um mandarim.
Ansiedade
A tua imagem
(mas, quem és,
se esse escrever silencioso
é falar a ninguém?)
Percorre-me
Por íntimas trilhas,
Antigas veredas, antigas
E não descobertas.
A tua imagem
É perfeita e sem forma
e, por não sabê-la,
Persigo-a
E persegue-me ela
Como fuga fluida
Que se esvai, se transforma,
Se repete e me afoga
Em mistérios de sons
Que não escuto.
A tua imagem,
Por ela perdem-se em buscas
Os meus olhares,
Transportam-me
Por meus veios,
Por meus rios,
Por trilhas, quem sabe, tuas.
E já não sei quem sou
Ou onde estou.
Não sei se não me vejo
Porque não te acho,
Se acho que te quero
Porque não me encontro,
Se me encontro cego
Por querer ver-te
Além da tua imagem,
Por querer-me disperso
Na tua infinidade,
Em silêncio repousado
Sem a dor da identidade.
Ângela Weill
Ela passou
E sorriu-nos, compadecida,
Depois, com suas grandes asas,
Para a luz partiu.
Visão
Buscam meus olhos
O que não pode ser visto:
A alma das pedras,
A forma do silêncio,
A face do vazio,
A superfície e o fundo
Deste oceânico mistério.
Buscam meus olhos
Olhos que me pudessem ver,
Que seguissem,
Como se o amor buscassem,
A lágrima que me corre sem querer.
Buscam meus olhos
Neste deserto inexplicável,
O rio que se estende além da noite
E se desfaz na luz do olhar
Que eterniza o amanhecer.
Paladar
Teu corpo sei de cor,
Na ponta da língua
Que percorre a pele,
Lanugem, sulcos
E os segredos todos.
Desfaço-me das transcendências
Por inúteis.
Basta-me teu corpo,
Basta-me teu gosto,
Basta-me saborear-te ali,
Onde tudo principia,
Basta-me esta fome
Que só me delicia,
Basta-me teu corpo,
Que só teu corpo me sacia.
Tato
Tocaram-se as mãos
E nunca se haviam tocado.
Perceberam-se tímidas
E ternas se entrelaçaram.
Trocaram seus corpos
Afetos antigos,
Mais antigos que o tempo.
Nada mais,
Só o respirar e o silêncio...
Depois soltaram-se as mãos,
Mas guardaram os segredos.
Eram agora íntimos para sempre,
Ainda que não mais se vissem.
Olfato
Lá fora, a chuva.
A janela, entreaberta vulva,
Oferece-me a noite,
Recendendo a terra.
Achego-me ao mistério irresistível,
Estendo-me no gozo
Do aroma que me fertiliza,
E na breve morte em que me perco,
Antecipo-me eterno
Na terra disperso.
Orientais
Fim da madrugada
A flauta de um pássaro
Clareia o silêncio
No frio da manhã
A teia entre as folhas
Se cobre de orvalho
A lua passeia
No azulado silêncio
Grilos conversam
Os olhos pousam
Sobre o pássaro empalhado
E quedam imóveis
Chuva na tarde
Perfume de terra no ar
Floresce a dor
Ao sol que se vai
As ondas veem e apagam
Passos na areia
Os dedos agudos
Da negra árvore morta
Arranham a lua
O incenso dança
O corpo ao som do mantra
É sonho e fumaça
Pétalas caídas
Contornam a floreira
Sob olhos contritos
Solidão e silêncio
Uma cigarra canta
É tarde agora
Negra mariposa
Cravo ferindo de vida
A branca parede









