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Olhares

 

 

 

Para Mary,

“Mas a vida, a vida, a vida, a vida só é possível reinventada.”
                                                             Cecília Meirelles

Manhã

 

 

A madrugada agoniza

Nas raias sanguíneas dos meus olhos.

Da noite em claro
Resta o silêncio.

Os amores sonhados,

Para sempre perdidos,

De novo adormecem

No fundo do orvalho

Bordado no rosto.

E, mais uma vez, amanhece.

 

Manhã
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Clown

Minha simples presença
É complexa e me escapa.

A língua que uso,
Com ela não me traduzo.

Por qualquer ângulo que me veja,
Não me sei agudo ou obtuso.

Sigo em frente no descompasso,
Achego-me, assusto-me e me afasto.

Tento pirouettes
E tropeço no silêncio, que é tão vasto.

Entro em cena por acaso,
Não sabendo o que falar.

Nu, busco-me em vão
No prazer de outro olhar.

Mas encontro um prumo sem fio,
Na ilusão a oscilar.

 

Clown

Sereia

Então, quando te vi
(e foi um brevíssimo momento),
Julguei ter visto
Nos cantos dos teus olhos
O irresistível tom do encantamento.

Nada mais temi
E ao mar me fiz.
Não pude alcançar-te, porém
(bem te sabia inexistente).
Perdi-me como quis.

Que importa...
Tua visão, guardei-a
E para sempre fui feliz.


 

Sereia

Voo

Olho o mundo
Com assustados olhos de pássaro,
E passo, e  voo...

Quanto peso os homens suportam
Para manter aparências.
E tudo tão à toa.
Paciência...

Leve, leve é o adejar
Do sorriso que me leva.
Ave!

Bailarino, solto-me no azul
Sinuosamente
E espero...

Que outros venham também,
Senão agora, um dia,
Na hora plena de suas vidas,
Amém!


 

Voo
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Andante

Meus dedos percorrem
Muito lentamente
Teu dorso nu, ao som
Do primeiro quarteto de Borodin.

As cordas entrelaçadas
Fazem do quarto
Uma caixinha de música
E de segredos sem fim.

Também se entrelaçam
Nossas pernas no centro do leito,
E buscam meus lábios o centro do mundo
No fundo de teus lábios carmesim.

O andante suave
Acolhe nosso movimento,
Ondulando sobre a pele arrepiada,
Como borboletas num jardim.

Na janela a brisa leve
Acaricia as folhas da avenca
Plantada num xaxim.


 

Andante

 

Algaravia

Aos poucos as palavras
Vão abrindo os olhos.
Lentas, sucessivas,
Estudam o terreno
E não revelam sentido.
Serpeiam, circundam,
Se buscam, se apoiam, se opõem,
Não sabem o que querem,
Ou sabem e não querem dizer.
Respiram, buscam no fundo
Coragem, hesitam, não dão
O braço a torcer e, ladinas,
Retiram-se súbitas, desfazem
A frase e põem tudo a perder.
Mas retornam, obrigadas.
Primeiro as mais frágeis
Que nada insinuam,
Nada esclarecem,
Compondo um texto
De todo vulgar.
Depois as outras, as outras,
Oh, as outras não vêm!
Recusam-se as sofisticadas
Por não se misturarem
Com as cotidianas.
Não participam as filosóficas
De um tema sem lustro.
Raso, sem lastro.
As que se dizem politizadas
Permanecem em estado de greve...
As anarquistas se dispersam
Em fonemas
E com tanto absurdo
Não se cria um poema.
Ameno, tão simples,
Tão doce,  pobrezinho,
Franciscano...
E como fica difícil dizer:
Eu te amo.


 

Algaravia
Sonata nº 6

Sonata nº 6



Erro ao longo da vida, eclipsado.
Busco-me em outro e me vejo
À borda de um poço debruçado.
No fundo há olhos que ameaçam
E são meus e não me sabem

Mas não os quero perder,
Não me quero a mim.
Quero no amor do outro,
Estar e ser ignorado.

Quero-me lampejos
Que em outros olhos se desfaçam.
Quero-me vago sentimento,
Perfume da noite indecifrado
Que amenize o cansaço dos que passam.

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Noite

Entre o nada e o nada
A vida é uma ponte estreita.
Sigo.
Acima, a lua pela metade –
O olho dissimulado de um ciclope
Espreita.

Tua negra boca escancarada,
Ciclope, a mim não ameaça.
Desdenho-te.

Enquanto sigo, sou,
Enquanto sou, sou tudo.
Sonho,
Estendo-me além dos horizontes
Que imagino.

E tudo me pertence –
A lua inteira, as estrelas
E as ninfas todas
Que por aqui passeiam.

Para fazer-te cego de ciúmes
Vou deitar-me com elas,
Nuas e alegres
À beira do abismo.

Porque, ciclope, digo-te isto:
Inútil é ser eterno.
Amor só há à beira do abismo.
Eu, que morro,
Existo.


 

Noite
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Outono
Outono 2

Outono

Noite.
Só ela no leito
Sob a angústia do lençol.
Na pele das mãos
O inverno se revela,
No imo do corpo
Ainda é verão.

Os olhos se fecham, à procura.
Entre o sono e a vigília
Repousa o mágico espelho.
– Diz-me:
Solidão é o que resta?
Não diz que sim o silêncio,
Nem que não...
Ela jaz em inerte sofrer.
Os olhos se abrem, ainda à procura,
E ninguém há para encontrá-los.
Pelo corpo desnudo as mãos ansiosas
Buscam outras
Que o corpo lhe buscassem.

Sob o lençol da angústia
Folhas amarelas espalham-se
No solo fértil, abandonado.
E no silêncio da vida inconclusa
Estende-se a noite
Do coração torturado.


 

Foto de Paulo Torres
Equilibrista

Equilibrista

Um fio extenso
Suspenso sobre o mundo:
A vida.

Em cada passo certo
A incerteza do próximo,
Alongando o risco
Que, contraposto à sapatilha,
Impede a queda presumida.

O espaço é livre,
Não há escolha, porém.
Só o fascínio do medo irresistível.
Ir sobre o exato limite imposto,
Eis o jogo e o ato.
Tudo por nada,
Ou pelo meramente suposto.

Estendem-se os braços
Na pretensão do equilíbrio.
Sob a luz das estrelas
Segue a imitação de um pássaro
Preso à própria crucifixição.

...E no fundo repousa
O mundo indiferente,
Alheio aos passos inúteis da paixão.

Caleidoscópio

Caleidoscópio

 

O fim da tarde submerge,

Tremulando no silêncio

Das cores indecisas.

A última será?

Trêmulo estarei na última tarde,

Como sempre estive

Todas as tardes e todas as manhãs

De todos os dias,

Em busca das formas sucedâneas.

Estarei como sempre absorto

No giro perpétuo do círculo mágico:

Rostos, amores, sorrisos,

medos, enigmas...

Nada tenho, nada sei,

Mas nunca é tarde.

Na tarde que morre

Quero não morrer,

Só pairar

Para sempre indeciso

Nos cambiantes reflexos das cores

Que inundam de vida o olhar.

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Inominado 13

Inominado 13

 

Na praça vazia,

Aos pés da grande estátua equestre,

As flores da homenagem

Murcharam ao sol...

 

Não, não importa a glória.

Não somos grandes,

Não somos fortes,

Não somos pétreos.

Somos pétalas,

Ainda que não queiramos,

Delicadas e transitórias.

Inominado 14

Inominado 14

 

Lá fora, uma inesperada

Algazarra de crianças.

Julgo ouvir uma cantiga.

Uma ciranda?

Não...

Dor!

Tenho a alma da cor

De uma foto antiga.

Minha vida, por onde anda?

 

 

Infância

Infância

 

A velha casa da vila

Era um castelo com o reboco caído,

Duas salas, dois quartos,

Rangentes tábuas corridas,

Aranhas, segredos no porão

E os sonhos de toda a vida.

 

À noite a avó catava o feijão,

Punha a carne em vinha-d'alhos

E cantava uma cantiga

Que dizia de uma velha

Que tinha um gato,

Um cachorro e um pinto

Debaixo da cama, tinha.

 

Aos domingos o avô fazia doces,

Dava banho nas cadelas,

Falava mal do governo

E colocava Galli-Curci na victrola.

Gilda, entre flautas, suspirava...

Il mio cor ancor palpita.

 

O tio solteirão lia o jornal

Com uma lupa dourada.

Contava do cometa de 1910,

Do naufrágio de 1912,

Dos bichos do tempo

De antes da história

E os olhos do menino se arregalavam.

 

A avó, hoje, já não anda

E espera nas manhãs sem sol.

O avô, que era espírita

Desencarnou à noitinha,

Em busca do indecifrável.

O tio, ateu e simplório,

Apenas morreu...

 

Olho-me

Na grande sala deste apartamento

De paredes brancas e lisas.

Não é um castelo.

Nada há debaixo da cama

E como brilham as tábuas corridas.

 

Espero o sol no amanhecer,

Sorrindo dos meus olhos marejados,

Que ainda hoje insistem em ver

Aquela magia tão perdida,

E sigo pelos dias, flutuante,

Abraçado às velhas tábuas rangentes,

Para sempre salvação da minha vida.

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Inominado 15

Inominado 15

 

Sobre o dentro de nós

Palavras

E palavras

Têm o peso inútil

Do que não é possível.

 

O que é em nós

Não tem nome

E resta no fundo,

Indizível.

Prelúdio

 

La fora, na quase manhã,

A chuva rabisca as folhas.

Fusas líquidas

Pululam nos vidros da janela

E escorrem semibreves,

Inseminando o olhar.

O ruído, protomúsica delicada,

Preenche o silêncio

Sem feri-lo.

Os sentidos se desprendem do corpo

E nadam no quarto

Como peixes distraídos.

Ouve-se o cheiro da terra,

Aspiram-se as cores

Que estremunham na penumbra,

A visão tateia os móveis,

A pele saboreia o frio.

E o eterno se vislumbra

Num momento fugaz,

Quando nada se observa

E tudo no indefinido

Se desfaz.

Prelúdio
Inominado 16
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Inominado 16

 

Não ter, porém querer

E temer a hora

Em que se há de ter.

 

De frente não se vê o verso

Onde corre o risco do prazer.

 

Faz-se o bordado pelo avesso,

Cobrindo o traço,

Que não se deve perceber.

 

 

Ocultação

Ocultação

 

Olhares felinos

Tocam-se, brevíssimos, no ar

E se escondem, fitando longe,

Na dissimulada linha do horizonte,

A intimidade

Dos segredos adivinhados.

 

As pupilas, que ardem, impassíveis,

Os guardam no fundo,

Levemente doces,

Levemente amargos,

Despidos

E não revelados.

Inominado 17

Inominado 17

 

Num canto da calçada

A pobre negra

Dá o peito

À criança magra.

 

Os carros seguem

Sobre as cruzes de asfalto.

A pressa leva os passantes

Pelos mistérios de suas vias.

O sol se estende sobre todos.

 

Na esquina

O cego do saxofone

Toca Fascinação.

 

E, como um súbito eclipse,

A profunda tristeza do mundo

Tudo em mim silencia.

Em silêncio

Em silêncio

 

Parto,

E ao partir

Nada quero dizer,

Nem quero que saibas

Que parto ferido

Por saber

Que não partiria

Se soubesse

Que, ao me saberes perdido,

Talvez tivesses

Teu coração partido.

Zero

Zero

 

Dispo-me,

Recuso-me,

Despenso-me,

Desfaço-me dos olhares

Com os quais me invento

Para inventar o mundo.

Quem sabe,

Na profunda cegueria

A luz então se faça.

 

Que isto seja escrito, ou não,

Tanto faz.

As estrelas são pontos na distância

E nós, os homens,

Apenas conseguimos exibir

Nossa absoluta desimportância.

Credo

Credo

 

Não creio,

É um modo de ver.

Em nada difiro.

As limitações do meu corpo

Insistem em me dizer.

 

Meu quinhão de amargura,

De paixão pela vida

E compaixão pelo outro

É idêntico ao de todos,

Creio.

 

Não creio.

É só uma característica,

Como os narizes platirrinos

Ou os crânios dolicocéfalos.

Não há necessidade

De se dar ao fato

Maior atenção.

 

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Devaneio
Devaneio
 

Deixar-se ir

Como brancos pássaros

Sobre o mar.

Guardar para si

Apenas o olhar

E flutuar na brisa

Como folha

Solta e imprecisa.

Ver o que além da visão

Se esconde.

Não rir, nem chorar,

Não ficar, nem partir,

Ser e não pensar,

Deixar de ser

Para existir.

Fim
Fim
 

. Marque-se o início

Com o ponto final

Arme-se a trama

Com os usuais signos desconexos

Pespontem-se sonhos e vigílias

Com vírgulas e reticências

Exclamem-se as certezas

Do amor incerto

Com a ansiedade das interrogações

E se faz a vida

E a luz não se faz

 

Tudo flui

No curso das aparências

Envelhece no presente

Sem se dar a conhecer

E seguindo a curva do universo

Volta ao final antes do início

No absoluto silêncio

Do verbo inexistente

Encontro

Encontro

 

Sonho com o mar

E descrevê-lo não sei.

Repousa o sonho

No silêncio interior da palavra.

Empenho-me em falar-te,

Busco-me e te procuro

No fundo deste oceano.

Sonho que me acho

E te encontro,

Pelo menos esta vez,

Quando teus olhos percorrem

O silêncio destes versos,

E então me vês.

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XII

XII

 

Na parede nua

O despudor do relógio oito,

Infinito vertical

Com os ponteiros eretos,

Partindo a noite

Em metades sem gozo.

 

Penetra-me o tempo

E não me fecunda.

Limito-me a ver,

Sabendo-me cego.

Defronto-me comigo,

Face a face com o nada.

 

Isto que sou,

Não sei o que é

E nada sei

Desta estranheza

Que me cerca.

 

A noite em metades

É um ponto em suspenso

Onde, desolado,

Apenas ouço o silêncio.

Ângelus

Ângelus

 

Seis horas da tarde rubra,

Sombras alongadas,

Ruas coalhadas,

Espasmos do fim do dia

Descompassado.

Lixo, gente,

Tanta pressa, tanta fuga.

Ricos e pobres

Em inúteis movimentos

Brownianos.

 

Da loja de discos

A Ave-Maria de Gounod

Anuncia mais uma noite

De desesperança plena.

 

O ar sufoca

E nada rima

Na imunda cidade imensa.

Vênus no horizonte

Brilha absurdo

E os olhos rubros de cola

Dos miseráveis das calçadas

Dizem que é tarde,

É tarde, é tão tarde...

Tao

 

Não me busco,

Percorro-me

Por caminhos indefinidos.

Sou, sem encontrar-me,

Quando não me sei.

Os caminhos se estendem

E são um.

Quantos somos

Quando amamos?

Muitos, todos,

Nenhum.

Quando me vês,

Me vejo,

Quando te vejo,

Te vês.

Tao
Poesia

Poesia

 

Versos

Sobre

Versos

Sobre

Versos

Indecifráveis.

A visão das palavras

Constrói mistérios

Sob os olhos ocultos.

O poema nasce

Quando é lido.

Quem o lê, o recria

E o que sente

É o pulsar

De sua própria poesia.

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Círculos

Inominado 18

 

As ruas se cruzam.

Nós também,

Sem nos olharmos.

 

Nossos rostos estão vincados,

Nossos ombros vergados

Ao peso de mais um dia.

Tanta coisa necessária,

Tanta coisa fútil.

 

As ruas são vias amargas

Por onde levamos nossa paixão

Cotidiana e inútil.

Inominado 18

Círculos

 

A lua.

Em torno, um halo azul.

Meus olhos,

Halos senis em torno,

Fitam a aura do mistério.

No jardim, a brisa

E o aroma de jasmins.

Em breve à terra retorno

E, quem sabe, serei

O aroma do jardim.

Outros olhos

Fitarão a lua

Sempre a circundar a Terra,

Sempre circundando o Sol.

E a vida se faz eterna,

Quando se imagina poder vê-la

De um ponto indefinido,

Sem vivê-la.

Círculos

Inominado 19

 

Quantos serão

Meus dias contados?

Inquieto-me -

São muitos já

E ainda tão poucos.

Sempre haverão de faltar.

A compreensão do mundo

Não cabe

Na exiguidade dos dias.

Que pena!

No fim, ainda que tenha amado,

E por muito que tenha procurado,

Nada saberei.

Inominado 19

Verde mar

 

Hotel em Fortaleza

quinto andar

frente para o mar

lá fora estendido

verde rompido

pelas ferruginosas pontas

de cargueiros naufragados

onde jaz meu coração

perguntam meus olhos marejados

bêbados deslizando lá

e aqui dentro do quarto

desta tarde quase noite

ainda rubra

ainda túrgida

do vinho bebido a dois

corpos há pouco esparramados

de suor banhados

nas salivas um e outro

somados sobre o leito

um sobre o outro

até o tudo-nada

deste mar aqui lá fora

bravio e verde

mais verde agora

este oceano de amor por ela

adormecida e nua

coberta apenas

por meu olhar enternecido

por deixar-me ela só ela

repousar em seu remanso

eu barco abandonado

destroço abatido

sem jamais ter ido

aonde não sei

como veem meus olhos

meu corpo nu refletido

soluçante por trás da janela

a fitar o mar estendido

verde roído pela ferrugem

da minha desesperança.

 

Verde mar

Segredo

 

É insustentável

Olhar outro olhar,

Senão por breve instante.

 

Querer ver o que

Além do olhar se esconde

É burlar a regra mais temida.

 

Dentro o que há não se sabe,

Mas é por demais triste

Para ser visto.

 

Somente cegos

Podemos nos suportar.

Segredo
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Agosto

 

Final de tarde,

O corpo estendido no sofá,

Objetos dissolvidos na penumbra.

A sonatina de Ravel

Permeia o silêncio.

Nada a fazer senão respirar.

Por mais que se espere,

Ninguém virá.

Entre o sim e o não

Pende a vida à toa,

Sempre por um triz.

Os dedos percorrem a pele,

As notas chuviscam cristalinas.

No início da noite em agosto

É difícil ser feliz.

Agosto

Khayyam

 

Estou só, amigo, todos estamos.

Bebamos nosso vinho sem alarde.

Que no silêncio paire apenas

A indefinição do olhar.

 

Busquemos em nossas taças a verdade,

Qualquer, se há, no fundo irrevelável,

Onde repousa o coração da divindade.

Khayyam
Luar

Luar

 

E as mãos

só elas trêmulas

quase denunciam o desejo

de percorrer o corpo

ali repousado alheio

desnudado pelos olhos

dissimuladamente vagos

de sentir a tepidez

da pele então arrepiada

de se perder nos pelos

quem sabe fartos

e no segredo então

quem sabe concedido

Ah

é só o desejo e o tremor

por pensar o desejo

e saber que o momento

se esvai impossível

no enigma que exaspera

o silêncio de seus olhos

que me fitam sossegados

e suas mãos abandonadas

sobre o colo e sobre elas

o olhar meu fixado

em busca de um leve

disfarçado tremor também

que me iluminasse

rosto e alma

como uma lua súbita

gigantesca e clara.

 

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Cinelândia

Cinelândia

 

Três cinemas moribundos.

Pombos, migalhas de gente

Espalhadas -

Mendigos, travestis,

Pivetes, leitores da Bíblia,

Operários, aposentados,

Crianças esfomeadas cirandando

O monumento positivista,

Formigas da classe mediana,

Todas de calças jeans,

Sumindo na boca do metrô.

Verão. A raça humana

Do mundo terceiro

Exposta à solar agonia.

E o Maestro Carlos Gomes

Rege a sua protofonia.

Teorema

Teorema

 

Nesta manhã de luz desfeita

Meu rosto cotidiano

Olha-me do espelho

E, sem qualquer proposição,

demonstra-me a incerteza:

Tenho nome,

Não tenho, nem essência.

 

Quando me vejo,

O que vejo não conheço,

Quando penso conhecer-me,

Sei que não me vejo.

Schönberg e entropia

Schönberg e entropia

 

Meus olhos percorrem

O teto enigmático do quarto.

E descem pelo silêncio

Amarelo das paredes.

Deitado convalesço desde que nasci.

As cinzas do dia atravessam a janela

E trazem as vozes do medo -

Frios sussurros,

As agonias do mundo,

Os fios rubros do sofrer...

Late um cão,

Ruge um motor,

Passantes discutem

Numa língua aglutinante,

Bate-me o coração.

O efeito Doppler altera o sibilar

De uma sirene evanescente -

Uma ambulância, talvez.

Alguém na maca

Fita a própria perplexidade

No teto branco...

Talvez a polícia

Alguém vai preso

como eu estou.

Algemas invisíveis, solidíssimas

Atam-me os pulsos abertos

A deixar escorrer

O sangue de amores tresloucados.

E tudo é passado.

Anoitece no teto,

As imagens sucumbem,

A dispersão segue seu curso.

Do rádio de cabeceira

Em frequência modulada

Escorrem cordas pré-dodecafônicas.

Um homem e uma mulher

Inutilmente grávida

Caminham pelo bosque.

O respirar não me transfigura.

Respiro, respiro,

Deitado desde que nasci.

Não tenho nome, nem heterônimos.

Inspiro, expiro, esqueço,

Espero a inevitável dissolvência,

Sorrio e desfaleço.

 

 

Entardece.

Vou mar a dentro.

O verde silencioso frio

Envolve-me.

Lentamente desço,

Em busca

Do repouso nas areias.

Danço despido,

Sinuosamente.

Os amores perdidos

Posso esquecê-los.

Quero apenas

A quietude definitiva

Do barco naufragado

Que adormece ali,

Além, no fundo,

No fim

Do imenso oceano

Que há em mim.

Anchor 41
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Visita à exposição Dalí

 

O femíneo minotauro

Longilíneo

De garras delicadas

Das órbitas

Retirou-me os olhos

E pô-los a correr

Como bolinhas de gude

Em ziguezagues

Pelas galerias.

 

E lá se foram

Planetóides desorbitados

Qual ovos fritos

Em busca do prato

Ricocheteando entre o concreto

E o abstrato.

 

Esculturas verdes sinuosas

Telas - armadilhas

Vênus - gavetas

Narizes - orelhas

Falos de Murano.

Por que não?

Porque sim.

Quando aqui o dia começa,

Começa a noite em Pequim.

 

Em frente à Mulher

Subindo a escada

O casal de adolescentes

Fundiu-se num beijo primal

Com línguas percucientes.

Ele com uma sacola às costas,

Ela com óculos de grau.

E depois saíram de mãos dadas.

 

Lúcidos - alucinados

Desceram os olhos as escadas,

Cumprimentaram o rinoceronte

E reencontraram-me, dono deles,

Na calçada/

 

 

Pequenos sinos esvoaçantes

Badalaram borboletas

Circundando-me a cabeça.

O tempo extinguiu-se

Na ampulheta sem areia.

 

Por que não?

Porque sim.

Nada sei, se penso em mim.

Logo, logo a lua vai nascer

E quando aqui chegar a noite

Na China acordaria um mandarim.

 

Visita à exposição Dalí

Ansiedade

 

 

A tua imagem

(mas, quem és,

se esse escrever silencioso

é falar a ninguém?)

Percorre-me

Por íntimas trilhas,

Antigas veredas, antigas

E não descobertas.

 

A tua imagem

É perfeita e sem forma

e, por não sabê-la,

Persigo-a

E persegue-me ela

Como fuga fluida

Que se esvai, se transforma,

Se repete e me afoga

Em mistérios de sons

Que não escuto.

 

A tua imagem,

Por ela perdem-se em buscas

Os meus olhares,

Transportam-me

Por meus veios,

Por meus rios,

Por trilhas, quem sabe, tuas.

 

E já não sei quem sou

Ou onde estou.

Não sei se não me vejo

Porque não te acho,

Se acho que te quero

Porque não me encontro,

Se me encontro cego

Por querer ver-te

Além da tua imagem,

Por querer-me disperso

Na tua infinidade,

Em silêncio repousado

Sem a dor da identidade.

 

Ansiedade
Ângela Weill

Ângela Weill

 

Ela passou

E sorriu-nos, compadecida,

Depois, com suas grandes asas,

Para a luz partiu.

 

Visão

 

Buscam meus olhos

O que não pode ser visto:

A alma das pedras,

A forma do silêncio,

A face do vazio,

A superfície e o fundo

Deste oceânico mistério.

 

Buscam meus olhos

Olhos que me pudessem ver,

Que seguissem,

Como se o amor buscassem,

A lágrima que me corre sem querer.

 

Buscam meus olhos

Neste deserto inexplicável,

O rio que se estende além da noite

E se desfaz na luz do olhar

Que eterniza o amanhecer.

Visão

Paladar

 

Teu corpo sei de cor,

Na ponta da língua

Que percorre a pele,

Lanugem, sulcos

E os segredos todos.

Desfaço-me das transcendências

Por inúteis.

Basta-me teu corpo,

Basta-me teu gosto,

Basta-me saborear-te ali,

Onde tudo principia,

Basta-me esta fome

Que só me delicia,

Basta-me teu corpo,

Que só teu corpo me sacia.

Paladar
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Tato

Tato

 

Tocaram-se as mãos

E nunca se haviam tocado.

Perceberam-se tímidas

E ternas se entrelaçaram.

Trocaram seus corpos

Afetos antigos,

Mais antigos que o tempo.

Nada mais,

Só o respirar e o silêncio...

Depois soltaram-se as mãos,

Mas guardaram os segredos.

Eram agora íntimos para sempre,

Ainda que não mais se vissem.

Olfato

Olfato

 

Lá fora, a chuva.

A janela, entreaberta vulva,

Oferece-me a noite,

Recendendo a terra.

Achego-me ao mistério irresistível,

Estendo-me no gozo

Do aroma que me fertiliza,

E na breve morte em que me perco,

Antecipo-me eterno

Na terra disperso.

 

Orientais

 

Fim da madrugada

A flauta de um pássaro

Clareia o silêncio

 

 

No frio da manhã

A teia entre as folhas

Se cobre de orvalho

 

 

A lua passeia

No azulado silêncio

Grilos conversam

 

 

Os olhos pousam

Sobre o pássaro empalhado

E quedam imóveis

 

 

Chuva na tarde

Perfume de terra no ar

Floresce a dor

 

 

Ao sol que se vai

As ondas veem e apagam

Passos na areia

 

 

Os dedos agudos

Da negra árvore morta

Arranham a lua

 

 

O incenso dança

O corpo ao som do mantra

É sonho e fumaça

 

 

Pétalas caídas

Contornam a floreira

Sob olhos contritos

 

 

Solidão e silêncio

Uma cigarra canta

É tarde agora

 

 

Negra mariposa

Cravo ferindo de vida

A branca parede

 

 

 

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