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Veleiros
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Veleiros

 

 

Tão cedo, tão tarde,

Leva-me o tempo...

O mar se estende,

Sempre o mar,

Para onde meus olhos

Se desprendem,

Veleiros silenciosos,

A buscar quem não conhecem,

Mas que talvez pudessem amar.

 

Como se há de vislumbrar

A estrela a seguir?

Como saber

Por que se há de navegar?

E eu,

Como serei capaz de me dizer

Que meu coração é só

Uma ilha perdida nesse mar?

 

E o sol,

Ah, o sol!

O sol não surgiu, ou já se pôs.

Tão cedo, tão tarde,

Tanto faz...

Brancos pássaros,

De asas lânguidas,

Displicentes como as ondas

Que parecem nelas mesmas se afogar.

 

Tudo é tão pleno,

Tão certo parece tudo,

E tão plena é a incerteza de tudo

Que talvez, um dia,

E nunca será tarde,

Surjam, silenciosos no mar,

Dois outros veleiros,

O amor em olhos desconhecidos,

Que haverão, enfim, de me encontrar.

 

Espanto
Espanto

 

 

O que é isto

Que sinto e não sei,

Que uiva,

E me esmaga,

Que gela

E me cega,

E me espanta,

E me dói?

 

O que é isto

Que excrucia meu peito,

Que arde

E me prostra,

Que grita e me espanca,

E me abusa,

E me rói?

 

O que é isto

Que me quer e me afoga,

Que me embala e me lambe,

Que me inunda de gozo,

E me beija,

E me encanta,

E me constrói?

 

O que é isto, tão longe, tão perto,

Tão certo e incerto,

Tão tudo, tão nada,

Que sei existir

E, não sei como, nasceu?

O que é isto?
Sou eu.

 

Valsa lenta
Valsa lenta
 

 

...e havia também a filha da vizinha.

Doze anos, três menos que eu, portanto.

Magrela, ligeiramente estrábica, usava óculos.

Fazia tudo às pressas, tropeçava na escada,

Corria de bicicleta, estudava piano.

Os apartamentos eram pequenos,

Eu ficava ouvindo da sala.

Seus dedos ágeis não ligavam para os andamentos

E a valsa lenta de Delibes percorria o teclado

Como uma ginasta saltitante.

“Mais lento”, eu gritava,

Ela ria e no dia seguinte

Tocava ainda mais rápido.

Mas elas se mudaram

E o tempo passou, muito tempo.

Encontrei-a um dia. Casara-se,

Tivera filhos, abandonara o piano.

Deu-me dois beijinhos e se despediu,

Estava com pressa. Nisso era a mesma.

Mas como a vida é incompreensível,

Aquela foi a última vez que a vi.

Dois anos depois, vim a saber,

Uma artéria traiçoeira

Rompeu-se em seu cérebro

E ela subitamente morreu.

Tinha-lhe afeto

E o som estouvado daquele piano

Ainda persiste,

Mas desde então e para sempre

A valsa lenta de Delibes

Tornou-se para mim

Uma valsa triste.

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Acerca do nada
Acerca do nada
 

 

Frio.

Antes da manhã

Uma gota desfaz-se num fio

E desce sobre a folha

Do arbusto

Plantado no silêncio.

Chuva
Chuva
 

 

 Dois toques de um sino.

 Murmúrios,

Soluços abafados,

A tampa é fechada,

Depois o silêncio.

Os vivos,

Vultos cinzentos,

Levam o morto

Pelas alamedas...

Um morto pelas alamedas,

Sob as árvores,

Indo...

Ausência,

Nenhum destino,

O tempo findo.

Lápides,

Cruzes,

Anjos de pedra,

A eternidade da vida, tão fugaz.

E a chuva,

Embebendo a terra,

Embebendo a terra,

Nada mais.

 

Evolução
Evolução
 

 

Primeiro viu a serpente

Que eles, inocentes,

Tinham mãos com polegares oponentes.

E tendo visto,

Sem nada insinuar,  retirou-se,

Pois sua presença era desnecessária.

Sob o sol rubro do entardecer

Os pomos rutilavam nos galhos.

Com suas mãos delicadas

Eles os colheram e provaram.

Eram doces e também amargos.

Entonteceram,

E a luz se desfez...

Eles se olharam, desejaram-se

E se conheceram,

Tornando-se um do outro estranhos.

Partiram depois não só para o leste

E, para sempre luciferinos,

Multiplicaram-se.

Desde então seus frutos incontáveis

Semeiam a terra com o sangue

Dos seus iguais

E com a dor inelutável

Da desesperança.

Uma tela de Freud
Uma tela de Freud
 

 

Dois corpos despidos

Estendidos exaustos

Entrelaçados no sofá.

Almofadas pelo chão.

Silêncio.

Dois rostos:

Um deles parece sorrir

Adormecido,

Perdido na ilusão.

O outro, assombrado,

Olha no vazio do teto

A dor insuportável da paixão.

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Fugaz
 Fugaz
 

 

Ah, se fossem flores

Teus doces olhos azuis,

Que, distraídos, não me veem,

Eu me faria um colibri

Para diante de ti voejar estático.

Talvez, então me visses.

E, se em tua surpresa

Me sorrisses,

Bem depressa de teus lábios

Provaria, antes de partir.

Dissipação
 

 

Longa rua deserta.

Noite, neblina, ninguém.

Sons sutis

No silêncio entretecidos -

Murmúrios vagos de uma harpa,

Raros sussurros de um gongo.

Fantasmas vagueiam

Em busca do tempo.

E o tempo não há.

E nada há,

Senão o desalento

Dessa longa rua imaginária

Imersa na solidão.

 

 

 

 

Dissipação
neblina
Modinha
Modinha
 

 

Pudesse eu de novo ficar

Frente a frente contigo,

Pudesse então revelar

Tudo o que sinto e não digo.

Pudesse fazer-te saber

Que imerso nesta dor

Sofro e não encontro abrigo,

Pois em teu coração não abrigas

Os suspiros do meu amor.

 

Pudesse eu não me ver

Perdido como me vejo agora,

Pudesse eu não saber

Que resta apenas ir-me embora

Pois de mim só o que viste

Foi um vulto, um semblante triste,

Que nada soube dizer,

Quando de leve sorriste.

 

E este silêncio interposto

Entre o teu olhar e o meu

Fez uma sombra em teu rosto

E o sorriso morreu.

Mas não morreu a esperança

De meu amor revelar.

Ah! Pudesse mais uma vez,

Contigo frente a frente

Eu de novo ficar!

Qohelet XXI
 

 

Mais um dia,

O sol de sempre.

Mais uma noite,

Nada de novo -

Estática inquietude,

Minha insônia habitual,

Minha habitual estranheza.

Não sei o que sou,

O que faço no mundo.

Não estou de pé, não flutuo,

Não caí na rede,

Afundo.

 

Mais um dia,

Sempre o sol.

Dia em branco,

Vida apagada,

Falta de ar.

A tela do notebook,

Hipnose matutina

Em alta definição:

As crueldades cotidianas,

Os humanos afazeres.

Lá fora, nas academias envidraçadas,

Os bem-aventurados

Dançam tarantelas aeróbicas.

 

Mais um dia,

Mais uma noite

A se repetir

E nada persiste.

Quase cochilo,

Devaneios, flautas de Pã,

Suaves, pagãs.

Ali, no fundo do quarto,

Acena-me, talvez,

Um fauno sorridente.

Não... Eros há muito se foi...

Desconexões neuronais, apenas.

 

Tudo é silício, pó,

Oceano eletromagnético

Que desfaz

Palavras, corpos,

A ilusão da alma.

Trama mal urdida,

Nós – cegos, virtuais,

Dispersos, inúteis

No tempo sem espaço.

Cordas evanescentes

Num campo de forças unificado -

Ditos que nada dizem.

Vaidade das vaidades...

Eis o que contemplo

Com a inquietude habitual

Da minha insônia, do meu cansaço.

Qohelet XXI
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Inominado 20
Inominado 21

 

A brisa da tarde

Levou o resto da chuva

E deixou um perfume de terra

Tão fugaz, tão leve...

Um breve sorriso

Da quietude eterna.

Inominado 20

 

Ele se vê só e profundo

Como o solo de um celo

Flutuando sobre o mar.

E na solidão abraça o mundo

Como um perfume sutil

Que tudo envolve

Mas não se deixa revelar.

 

 

Nomes
 

 

Palavras...

Tão inúteis.

Que podem elas dizer

Acerca do ruído da chuva

Ao entardecer,

Acerca do silêncio do pássaro

Pousado no ramo,

Acerca do frio

Na manhã orvalhada,

Acerca do azul,

Qualquer azul, em qualquer lugar,

Que podem?

Acerca do arrepio

Que percorre a vida,

Acerca do amar,

Acerca do morrer...

Que podem?

Quase nada.

Alívio, ilusões,

Jogos de cena,

Nomes...

O que é

Está em tudo,

Inominável,

Mudo,

Além do dizer.

Inominado 21
Nomes
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Call me Ishmael
 

 

Quando a solidão e o silêncio da madrugada

Assombram-me com a indiferença do mundo,

Quando as tristes folhas do outono

Mostram-me a ilusão da permanência,

Quando a chuva e o vento sobre os telhados

Deixam-me a alma transida de medo,

Quando os miseráveis e os bêbados das ruas

Matam-me a compaixão e me embriagam de tédio,

Quando o alvoroço da discórdia e o sangue das guerras

Tingem-me os olhos com as lágrimas do horror,

Então

Busco a vastidão do mar,

Um oceano imaginário onde flutuam estrelas

E seres alados se dispersam nas profundezas,

Onde não há palavras, só o canto das sereias,

Onde naus sem velas singram entre flores e planetas,

Onde não se levam bússolas, nem se buscam verdades,

Pois todas as vagas perduram num infinito agora,

Onde o depois é também o antes,

Onde todos os sons são cores e todas as cores rimam

Entre as ondas da indizível poesia

Que reverbera nos corações dos navegantes.

Call me Ishmael
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Horas da noite
Horas da noite
 

 

Parede branca

Relógio-olho

Números romanos

Pêndulo oculto

Ruído sempre igual

Lento castanholar opaco

Do tempo aprisionado

No espaço restrito

Da sala

Tempo estático

Ponteiros se movendo

Parados

 

XI

Que fazer desta vida arrasada,

Ela se foi,

Outras também.

Aos poucos todos se vão.

Caminha, Joãozinho, até o copo

E verte sobre o gelo

A alcoólica ilusão dourada.

Parece chá...

Quando fauço chá, fauço chá,

Quando fauço água, fauço água,

Traduziu Houaiss,

Que traz este falso chá?

Só o ponto de interrogação.

Só? Nada mais?

Andar à toa por cemitérios e bordéis.

Leva-me, santo, além das horas.

Lá fora, dez andares abaixo.

Descer pela janela é vulgar.

Uma língua de asfalto,

Coleópteros metálicos correndo.

Calçadas, micro-bípedes passando,

Mistérios.

Em frente, colmeias de concreto.

Janelinhas acesas e apagadas,

Mistérios insondáveis,

Crimes inconfessos,

Vidas se movendo

Paradas.

A falta que faz uma teleobjetiva.

Aqui, Samsa toma um gole,

Olha a barriga lobulada,

E pensa em Grace Kelly.

 

XII

Um sino,

Mezzanotte!

Sia maledetta la strega,

La strega infernal!

Ahhh!

Vida: uma ópera,

O bruxo disse.

Ela se foi

E, antes dela, outras.

Fidelíssimas Leonoras,

Infidelíssimas Carmens,

Infelicíssimas Neddas,

Tolos tenores,

Barítonos velhacos,

Un altro sorso....

Amores

O res ridicula...

Ódios

O res ridicula.

Vida

O res ridicula...

Morte...

Todos se vão,

Aos poucos,

À francesa.

A morte nunca é súbita,

Vão tirando nacos

Esses audaciosos que ousam deixar-te,

Que ousam morrer

Antes de ti,

Esses, que tanto querias

E que se vão sem nada dizer,

Canibais,

Reduzem teu corpo a lembranças

Irremovíveis, inalcançáveis...

Morre-se aos poucos

Cada vez que se respira.

Apaga a luz da sala,

Cambaleia às escuras no palco,

Bebe mais,

Tira a roupa, fica nu,

Vesti la giubba!

 

I

Quarto copo vazio.

Sobre o carpete manchado

O Buda encharcado,

Sentado,

Olhar bovino, beatificado.

Bebe mais, Buda,

Deixa os olhos injetados

Contemplarem além dos véus de Maia.

Nada há ali,

Tudo está aqui nesta sala,

Nesta cela.

Ou então deixa os olhos bem fechados,

Deixa-os valsar por entre a multidão

Dos teus fantasmas,

São apenas os teus fantasmas,

Entoando melopeias

Que bordam o pranto

Da tua definitiva solidão.

Não sabes as senhas

De entrada ou saída,

Estás aqui e depois não estarás mais.

Só isso.

Ela se foi, eles se foram.

De nada adianta teu querer,

Tua vontade e outras fanfarronices.

Todos te são desconhecidos,

Todos te desconhecem,

Para sempre.

Bebe mais um pouco.

 

II

Chove

Lá fora,

Mas não há a voz

Suave da cantora

Para amenizar o frio

E desfazer o silêncio.

Céu de negro granito.

Ele se estende no sofá,

O olhar perdido -

Uma tela de expressionismo

Medíocre -

Busca no teto

A faixa vaporosa da via láctea.

Passeia a mão pela via dolorosa

De seu corpo.

Aos poucos tudo se esvai em esquecimento.

Filme em preto e branco,

Dissolvência.

 

III

Salomé dança langorosa.

Um a um os véus se soltam,

Adejam no ar almiscarado

E então repousam sobre as lajes.

 

Afaga o sexo com uma rosa.

Os cabelos soltos se revoltam

Por sobre o rosto acarminado.

Tu a vês e não reages.

 

Crias esta cena neblinosa

Em sonhos que sempre voltam.

Tu, tetrarca nu e amargurado,

De solidão e dor fazes teus trajes.

 

Não se criem mais rimas neste sonho,

Nada rima em tua vida.

Acorda para este silêncio tão tristonho,

E bebe, e espera a única saída.

 

Nada tens,

O tempo te transpassa, não te pertence,

E se olhas o céu pela janela

Não decifras o teu mistério.

As vagas estrelas da Ursa,

Que acalentaram o jovem gênio,

Não brilham neste hemisfério.

 

IV

Como era linda Claudia Cardinale

Como gostaria de ver os olhos de Capitu

Onde estás, Lésbia,

Da me basia

Como seria o beijo de Tosca?

A divina Sarah feriu-se no Rio

E começou a morrer...

Como estás bêbado, Samsa

Põe aí um ponto de exclamação

Uma ereção gráfica

A garrafa está vazia

A sala está vazia

A vida é tão vazia

A noite está tão fria

Lá fora continua a chover

Percebestes agora esta extrassístole

Tens ainda um coração

Para quê...

Estás a estalar, coração.

Ser ou não ser

É preferível não

Não, não,

Não sei o que sou

Espantam-me as crenças

E as descrenças

Desconheço os êxtases dos santos

Porém, compreendo,

Sim, compreendo

O horror do senhor Kurtz.

Vá dormir, Joãozinho!

 

V

..........................

O relógio imperturbável

Persiste no truque monótono

Movendo os ponteiros parados.

O tempo sempre o mesmo

Nunca o mesmo.

No mar distante

Acima do horizonte

As estrelas vão empalidecendo

E um avermelhado quase imperceptível

Começa a dar fim à madrugada.

 

 

 

“... Não, é impossível; é impossível transmitir a sensação de vida de qualquer época específica de nossa existência – aquilo que perfaz a sua verdade, o seu significado – a sua essência sutil e penetrante. É impossível. Vivemos tal como sonhamos – em solidão...”

 

 Joseph Conrad – O coração das trevas

(trad.  Luciano Alves Meira)

 

 

neblina
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Os sapatos de Artaud
 

 

 

Horror!

Não me encontro!

Procuro-me nos armários,

Nas gavetas,

Nos livros,

Nas malas,

Embaixo da cama...

Nada, nada!

Enfio as mãos nos bolsos:

Não, não estou!

Não há bolsos,

Estou nu!

Procuro o celular,

Telefono-me:

Caixa postal.

Que fazer?

Prosseguir?

Continuar na minha ausência:

É manhã.

Ensaboar-me,

Dentescovar-me,

Tricolavar-me,

Axilodesodorantizar-me,

Epidermoaromatizar-me,

Enxugar-me,

Pentear-me,

Vestir-me

Com cuidado burguês

E sair.

Lá fora as ilusórias verdades cotidianas.

Melhor assim.

Esqueço-me que não me achei.

Olho, besta, pro espelho.

Que é isto?

Isso, aquilo, aquele?

Vade retro!

Quanta flacidez,

Quanta ruga,

Gargântua!

Encolho a barriga

Com desfaçatez sutil.

Assim, sim!

Nem assim:

Púbis grisalho.

Tudo escondido,

Tudo de fora,

Tudo perdido,

Eu inclusive,

Neste sempre agora.

E por mais que se diga,

Nada se diz,

Nada foi dito,

Disse um irlandês, não eu.

Não, não vale me iludir,

Não quero me achar.

Quem se acha também se perde,

Desliga a televisão,

Fecha o laptop,

Vagueia por nirvanas inexistentes,

Dá-se à licantropia

E se põe a uivar para a lua.

Virão doutos e exorcistas,

Alquimias, cruzes

E outros tantos malabarismos.

Esquecem-no, por fim, no sanatório,

Até que um dia é encontrado

Na beira da cama,

Rindo sem respirar,

De olhos abertos,

Agarrado aos sapatos!

 

Os sapatos de Artaud
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Melancolia

 

 

Recordação

Do que não foi.

Caminhos não surgidos.

Nós, lado a lado,

Em silêncio.

Passos leves, contidos,

Mãos enlaçadas,

Almas tão juntas.

Serenidade,

Sol da tarde,

Nuvens esgazeadas,

Terra úmida,

Folhas no chão,

Flores miúdas,

Momento sem tempo,

Vida plena,

Imperceptível,

Sem ação ou reação.

Amor.

 

Nada foi.

Nada se fez.

O sol se pôs.

Caminho áspero,

Mãos solitárias,

Passos perdidos.

Eu,

Meus olhos no chão,

Folhas amarelas,

Flores murchas,

Tempo sem momento,

Inação.

Vida esvaída

Na trama inútil

Da ilusão.

Melancolia
Pueril
Pueril

 

 

Inventei que me amaste,

Mas foi só invenção,

Ficaste perto, eis tudo,

E, sem perceber meu amor,

Feriste meu coração.

 

Seguiste e levaste meus sonhos.

De mim, agora bem sei,

Nada pudeste saber,

Pois quando te viram meus olhos,

Passaram os teus sem me ver.

Arcanjo
Arcanjo
 

 

Tolo,

És só fingimento.

Temes

Minha presença,

Inescapável realidade.

Daqui, sob teus pés

Rio-me de tuas sandálias barrocas,

E de tua inútil balança.

Tua espada erguida

Não me assusta, nem me alcança.

Admito,

Há dramaturgia em nossa cena.

Subjugas-me no templo,

No mundo, porém,

Quando te fores,

Minhas asas escuras

Se farão claras

E hão de pairar imensas,

Não as tuas.

Tentas calar-me porque ofereço

A certeza da finitude,

Ante a infinitude das incertezas,

A vida como é, sem assombros,

Ante a assombrosa trapaça da eternidade.

Vai-te!

Em nome dos teus

Encharca-se a terra de sangue,

Respira-se o ódio,

Destrói-se o paraíso.

Vai-te!

Estampas na face

O vazio de tua transcendência,

Leva-a contigo,

Leva tua soberba,

Retorna à tua inexistência

E deixa-os aqui,

Deixa-os viver,

Deixa-os ver

A serenidade na angústia,

A paz na inquietude,

O prazer na perplexidade

E a estranha beleza

De suas insondáveis consciências.

 

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Mínimos
     Mínimos

 

         

 

1

 

No frio da noite

Um grilo

Dá voz ao silêncio

 

 

    2

 

Um galho seco

Um pássaro pousado

O sol e a solidão

 

 

    3

 

Quase noite

Aragem no jardim

Indefinida saudade

 

 

 

    4

 

Folha em branco

Lápis pousado

A angústia do nada

 

 

    5

 

Friozinho da tarde

Chá de camomila

Serenidade plena

 

Miroirs – Oiseaux tristes
Miroirs – Oiseaux tristes
 

 

Bordando o silêncio

O som levíssimo do piano

Faz do espaço

Um instante enternecedor

De tristeza feliz.

Sussurro
Sussurro
 

 

Ah!

Duas letras

Um sinal...

Expiração curta

Silêncio ensurdecedor

Assombro e angústia

Alegria e prazer

Gozo

Dor

Revelação

Mistério

Vida

Morte

O que há de ser?

Quem há de saber?

Ah!

Inominado 22
 

 

Calçada larga,

Vitrines de luxo,

Num canto uma toca

De papelões e farrapos.

Os olhos da criança-mendiga

Veem e não decifram

A indiferença dos que passam.

Rua clara,

Longa e triste.

Vozes, carros, ônibus, motos,

A pressa de todos

Nos dias rotineiros.

E a vida,

Escoando sem sentido.

Rio longo,

Triste e seco

Sob o sol de janeiro.

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Inominado 22
Afeto
Afeto
 

 

Deixaram-me só,

Mas não deixei de sorrir.

Meu coração,

Silencioso abrigo,

Guarda com ternura

As lembranças dos que seguiram

E já não se lembram

Que me viram

Para Ana aos três anos
Para Ana aos três anos
 

 

Da rachadura na parede

Em que Dona Aranha está subindo,

Os olhos de ameixa da menina

Fazem um longo rio caudaloso

Onde os indiozinhos remam

Em suas canoas.

E o rio deságua no oceano do teto,

E no centro do oceano,

Que interessante,

Boia um sol bem amarelo!

Dois dedos da menina

Fingem que passeiam

Em torno desse sol

E os dedos,

Logo, logo, passam a ser

As perninhas

De uma graciosa bailarina.

E a bailarina dança,

Gira e gira

No palco que é um mundo

Todo azul.

Como encanta a bailarina!

E, vejam,

Chegou a rainha do gelo!

E agora dançam as duas,

Ela e a menina,

Por entre os floquinhos de neve.

Lá do alto da torre

A loura princesa acena

E as borboletas

Pousadas nas longas tranças douradas

Aplaudem com suas asinhas.

Os passarinhos abrem os bicos

E até se esquecem de piar

E as florinhas amarelas,

Ah! As florinhas amarelas

Ficam assanhadas,

Pulam dos galhos

E se põem nas palmas das mãos

A cirandar.

Como a vida é amena!

Mas a menina,

Que está deitada no tapete,

Corre os olhos pela sala.

Descobre outros olhos

Enternecidos,

E lembra então de perguntar:

Vovô, vamos tomar chocolate?

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Hora do almoço

 

 

Restaurante.

Self service.

Pratos brancos

Empilhados.

Alimentos variados

Em recipientes inox

Ao longo do balcão.

Colaboradores na fila

Escolhem...

Rodelas de tomates,

Delicadas ervilhas,

Tirinhas de cenoura,

Palmito, queijos, massas,

Bifes, frango grelhado,

Peixes e pirão,

Arroz branco e integral,

Feijões.

Sempre o mesmo sabor.

Colaboradores às mesas.

Comem e bebem

Sem perceber,

Atentos às telinhas dos smarts.

Sorriem, espantam-se,

Fazem que sim com a cabeça,

Fazem que não,

Arqueiam as sobrancelhas,

Deixam os talheres de lado

E praticam nos minúsculos teclados

Rápidos exercícios à la Czerny,

Mas só com os polegares.

Conectam-se com a vida

Que parece só existir

Ali atrás, em HD.

Connais-tu le pays

Où fleurit l’oranger?

Diante de mim o suco de laranja,

O prato ovalado, o ruído

E o silêncio.

Bem-aventurados

Colaboradores!

O céu lhes pertence.

Levo à boca o garfo

Com ervilhas e batatas

E mastigo-as com singeleza,

Sentindo o sabor agridoce

Da minha inelutável solidão.

 

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Hora do almoço
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Inominado 23

 

Oh!

 

O Rio de janeiro a janeiro é cada vez mais

Um Rio tormentoso

Onde as coisas más se anunciam com alarde

E são tantas que nos entorpecem 

Neste mormaço desditoso.

É tarde... é muito tarde.

Inominado 23

                        © 2016 O poeta.                            

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