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Estruturas poéticas

 

 

Tirésias



Os claros caminhos
Se perdem nas brumas.
Só ele, o sábio, os vê
E por eles, livre, caminha,
Com seus olhos - neblina.

Dele é o dom e a verdade
Que paira longe do tempo
Na claridade das trevas.

Nossa é a dor e a sina
Do longo tempo de penas
Nas trevas da claridade.


 

Tirésias
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Anchor 102

Quadro abstrato

 

 

Limites retangulares

Iluminados,

Iridescentes,

Instigando.

 

Cores abruptas,

Puras

Rupturas.

Desfiguras.

 

Linhas

Cruzadas,

Falsas

Urdiduras

 

Soltas nos ares.

 

Cartesianas

Abscissas

Abismais.

Líneas

Lineares

Ares

Ars...

 

Kouros

 



Pétreo despido corpo
Diante de mim desperto,
O que me despertas?

Percebo
A levíssima ironia
Que te orna os lábios.
Por que?
Por que me fitas?

Não, não me fitas...
O olhar
De teus olhos amendoados,
Sorrindo, transpassa-me,
Fere-me por me ignorar
E se perde
No oracular segredo
De um tempo ausente,
Onde nunca estive
E jamais poderei estar.

Invejo o que és
Não sendo. Invejo
A arquetípica simetria
De tua milenar juventude;
A exposta clareza
De tua perpétua virilidade:
A sólida liberdade
De teu corpo idealizado.
Invejo-te...
Eu, que sou...

Mas, quem sou?
Sou quem olha,
E, ao olhar-te,
Percebo
Meus limites transitórios.

O levíssimo sorriso
Que, por ironia,
Me orna os lábios,
Orla a tristeza
Do crepúsculo inevitável.

O esboço estático
Do teu passo,
Jovem efebo,
É teu eterno recomeço.
Eu passo
E envelheço.

Tua verdade é, e nem existe.
Eis porque tanto te desejo:
Tu persistes,
Eu pereço.


 

Kouros
Escultura grega
Kouros 2
Koré

Koré

 


Jovem mulher antiga
De tranças ornada
E arcaico sorriso
Fascina-me olhar-te.

Imagino que me olhas
E, por querer, me ofertas
Os segredos de tua arte.

Não, não me queres...

Tu és quantas mulheres?

Dói-me ver que te ocultas
Sob o indefinível matiz
Das dobras de tua veste.
O que, em silêncio,
Tua forma declara
E, delicada, não diz?

À tua frente imóvel,
Transido de medo,
Ansioso espero
Quero o claro teu corpo
Se revele
Para sonhá-lo inteiro
Sobre o mármore da minha pele.

Vejo-te em parte,
Partido me vejo,
Em fragmentos me perco
E não vejo onde estou.

Devo partir para encontrar-me
E recriar no encontro
As partes que o tempo roubou...

Refazer os teus braços,
Envolver-me com eles,
Sentir tuas mãos renascidas
Afagar-me os cabelos.

Dói-me ver que ocultas
Sob as dobras do meu passado,
Tua imagem silente
E que não posso alcançá-la
Sem descobrir meu presente.

Mas te olho
E, por te olhar,
Me vejo eterno contigo.
Eis o que me ofertas.
Tua arte é meu abrigo.

Em ti estarei para sempre
Mesmo quando nada mais for.
E despido repousarei em teu seio
Como no seio do paraíso.

Serei então tuas tranças,
Olharei por teus olhos
E ornarei tua boca
Com a tranquila dor do meu sorriso.



 

Koré 2
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Escultura grega
Escultura

 

Escultura

(impressões de uma escultura de Jan Trmal)

 

 

 

Três

Blocos

Superpostos.

 

Limitadas

Fixas

Superfícies

Ondulantes

Adulando

O Olho

Que olha

A nudez

Do corpo

Sugerido

Surgido

Súbito

E nítido

Excitando

O olho

Que olha

Agora

Atento.

 

Bloco abaixo.

Entreabertas

Coxas

Sulco

Sede

Centro

Do olho

Que olha

Faminto -

Terracota

Volúpia.

 

Bloco ao meio.

Ventre

Umbigo

Semeadura

Regaço

Repouso

Do olho

Que olha

Nostálgico -

Terracota

Ternura-madre.

 

Bloco acima.

Seios

Perfeitos

Perfeitas

Mãos pousadas

Meios braços

Mamilos

Lírios

Leito

E alimento

Do olho

Que olha

Sedento

E saciado -

Terracota

Amor.

 

Trindade

Mulher

Deidade

Unificada

No olho

Que olha

E quer

E crê

Que a vida

Quando é assim

Amada

Terna

Terra

Feminina

Eternizada.

 

 

Satie

 

 

 

Erik,

Rico

Satírico

Sossegadamente

Onírico-insolente...

 

Amada,

Passeio por teu corpo.

Em minhas mãos teu seios

- Morceaux en forme de poire -

Teu envolvente olhar,

Teu abraço.

 

Vou pelos ares

Cercado de calipígios querubins,

Entre nuvens azuladas,

Entre rosas, margaridas e jasmins.

 

Brisa, movimento,

Sussurros e silêncios.

Fiquemos assim estáticos,

Sentindo passar - neste ir e vir -

Tão fugazes momentos,

Fugacíssimos.

 

Ah! Ter-te, dar-me,

Palpar com arte

Recônditas partes

- Veritables prèludes flasques.

 

Ficar assim, ficar

Ficar e ficar

Sempre, querendo o fim

E não querendo

- Desespoir agrèable -

 

Minha vida,

Vida, a vida

- Chapitres tournés en tous sens...

 

O  tilintar, o lilintar cruel!

Ó tu, brutal, trágico,

Grotesco, deselegante despertador,

Me acordas sem qualquer cerimônia,

Me fazes voltar

A este mundo concreto

Cheio de acrimônia.

 

Fito o teto:

Tua imagem-mito,

Amada,

Se desfaz no ar...

 

Ignóbil sonoro objeto,

Abjeto. Por tua causa

Eis o que vejo:

A vida, vidinha fria,

Sem nenhum sentido.

Flacidíssima

- Pour un chien -

eis o que vejo...

 

Enfim, amada,

Restam-me os bocejos,

Disformes resquícios

Dos nossos inexistentes beijos.

 

Satie
Anchor 107

Escala

 

 

 

Amor

Há?

A

Morte

Há.

Temor

Só...

Por

Ter

A morte

Do amor.

Dó,

Dor,

Sim,

Ao redor

De si...

Sol lá,

Aqui não.

Por do sol.

Coração -

Solo

Vão.

Sob

O sol.

Amar?

Amor?

A morte?

Só?

O sol?

Oh!

 

O planeta

Gira

Inutilmente.

Inútil

Mente.

Nada.

 

 

Espelho

 

 

 

Como um gato cauteloso

Os olhos passeiam lentos

Na superfície do enigma.

 

A forma se delineia

Na penumbra disfarçada

E, sorrindo no silêncio,

Se desfaz, não capturada.

 

As mãos avançam no ar,

As rugas das mãos ferem o olhar.

Há nada,

Há dor,

A dor do tempo que é nada.

 

O vulto não vê

E nos vê

Ou finge se ver

E cego se afasta...

 

Longe,

Num inexistente jardim,

Jazem as colunas

De um templo em ruínas.

 

Um pássaro pousa

Na quietude intocável

...e cego se afasta

E se desfaz, não capturado,

Como se desfazem os olhos,

Aprisionados no fim.

 

Há nada para ver.

Perplexidade, desalento.

Estóicos, os olhos

Se fecham, lentos,

E se afogam

Sem lágrimas

Nas profundezas do enigma.

Espelho
Gilles
Watteau

Gilles

 

 

O ser é impessoal

E se dispersa em todos.

Antes de Daguèrre,

Muito antes,

E antes de eu existir,

Watteau retratou-me
Com interior perfeição.

 

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Gravuras de Goeldi

Gravuras de Goeldi

(impressões sobre uma exposição)

 

 

Brancos traços

Retilíneos,

Delicadamente rudes,

Arranham a negra,

Negra noite.

 

E criam

 

Amplos cenários

Confinados

Na calma

Imensidão da dor.

 

Cenas:

Sob a chuva,

Sob as luas,

Sob sóis noturnos

Movem-se encurvadas

Estáticas figuras

Solitariamente unidas

Na trama estranha

De luminescências

Obscuras.

 

Pequenos atos

Em magia fixados:

O cepo, o cutelo,

Os peixes e os peixeiros

Arrancando-lhes as entranhas.

 

Um homem

Sulca a madeira

E molda

Sulcados rostos anônimos

Perplexos,

Que nos fitam

E que, perplexos,

Fitamos.

 

Interroga-se sem se perguntar

 

O que se busca

Nesses traços...

 

O que se vê

Não vendo...

 

O que se sorve

Dessa obra

Que preeenche e asfixia...

 

Dor calma

E imensa,

Pétrea delicadeza.

 

O bicho-preguiça,

O clown,

O príncipe idiota.

 

Ansiedade

Num quarto, só.

Só?

 

Oceânica vida

Dor irada

E intensa.

 

E, súbito,

O grande peixe vermelho,

Repousado,

Nos concede alívio.

 

E o generoso guarda-chuva

Aberto,

Como um rubro,

Rubro coração

Nos protege da negra,

Negra noite...

 

E nos aquieta,

Repousados

Em paz

Silenciosa

Imensa.

 

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Esfinge

Esfinge

 

 

Devora-me sem decifrar-me,

Pétrea mulher-alada,

Pois de mim nada quero

A não ser querer-te

Como quero que me queiras.

 

Devolva-me a mim

Ao devorar-me

Pois onde estou não sou

Senão as penas por não encontrar-te.

 

Desfaça as tramas que me sufocam

Ao devorar-me

Pois ao desfazer-me no teu ventre indecifrável

Nada serei senão o desvendar-me

E - quem sabe - então saberei amar-te.

Anchor 113

Inominado 1

 

 

Manhã.

Abro a janela.

Lá fora a vida

Que passa

Que passa

E nada me revela.

 

Inominado 2

 

 

Entre os lírios

O minúsculo caixão branco

Encerra uma possibilidade.

Por ela choram os círios.

 

 

Inominado 2
Inominado 3

Inominado 3

 

 

Vida, dádiva
Divina!
Dádiva?
Divina?
Dúvida
Devida.
Decida!
Vida:
Dever?
Devir?
Delírio?
Descida
Desde o entrar
Até a saída.
E deus nunca houve
Que estivesse a olhar.

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Inominado 4



Quebrou-se a xícara
De porcelana da China,
Porcelana fina.
Não importa
Eu não gosto de chá.

Inominado 4
Inominado 5

Inominado 5

Manhã de repente!
Ergo-me, invade-me o sol.
Ergo sum!
Invadem-me fátuas crenças.
Cogito em mim crescer,
Crescer com o nascente…
No quarto o armário, o espelho
Na manhã de repente
Desmente:
Em mim o sol é poente.

 

Inonimado 6

 

De joelhos sobre o mausoléu

O anjo de mármore

Olha o céu

E chora por alguém

Por quem

Agora

Ninguém mais

Chora.

 

Anchor 118
Inominado 7

Inominado 7

 

O espantalho solitário

Em êxtase, crucificado,

Abraça o espaço

E lhe suplica os pássaros.

 

Entardecer

 

Entardecer

 

 

Em nossos olhos

Guardemos estas lembranças.

 

E voemos pra longe

Como dois pássaros ladrões.

 

Depois fiquemos, assim, pairando,

Entre as nuvens tênues das ilusões.

 

Finjamos que este azul todo

É nosso pra sempre.

 

E que pra sempre estaremos

A ouvir suaves canções.

 

Esqueçamos que tudo

É só um breve instante.

 

Um momento fugidio,

Que se esvai,

 

Que a nossa vida

É esse fugaz lampejo

 

Que logo se desfaz em nada

E não retorna mais.

 

Ar refrigerado
Ar refrigerado
 
 

 

Fere o silêncio

Da sala acrílica,

Polivinílica, retilínea,

Plástica, alumínica,

A expiração sempiterna

Das guelras metálicas

Que margeiam o teto.

Sussurro suavíssimo,

Limiar, cartesiano,

Paralelo às abscissas

Até o infinito.

Olhos meus entorpecidos

Submersos no ar frio purificado

Entre lisas brancas paredes

Como peixes confinados

flutuam, fitam

O musgo verde do carpete

Os sóis pendentes dos spots

E a emoldurada reprodução

De duas mulheres de Gauguin.

Breve retângulo, adorno irônico.

Fitam-nas meus frustrados olhos

Súbito encharcados.

Fitam-me elas compadecidas

Do além do ouro de seus corpos

Fitam-me de lá,

Vivas,

Depois do fim das abscissas.

Fitam-me

Da policromia da vida

Que se desfaz em formas

E se refaz em flores, em praias,

Em corpos e sexos

Além desta ansiedade.

Fitam-me de lá, livres,

No calor da vida

Tão longe, irremediavelmente.

 

Optica 1

Óptica 1

 

 

Estou doido ou doído?

Tido e havido

Como o tal que nunca fui,

Não me relevo

Nem me revelo.

Iludo-me.

Os fatos são farsas,

Os atos são falhos por querer.

A consciência é só isto:

Um absurdo suceder

De espalhafatos.

Passo por mim e por todos

E nada há de novo -

Todos fingimos sempre

O que sempre fingimos ser.

Qualquer semelhança entre mim

E o que de mim supõem,

Por vaga inconfidência,

Ou mera desconfiança,

Terá sido inútil coincidência.

Minhas faces cambiantes

Passeiam entediadas

Pelos olhos dos outros.

Atuo.

Aturo.

Aturo-me ator.

Os atos são farsas,

Os fatos são falhos

As faces são falsas.

Tudo farsa.

A farsa flácida face,

A farsa plácida face,

A farsa plástica face,

A farsa cínica face,

A farsa lúbrica face,

A farsa lúgubre face,

A face fantasma

Da ópera.

Antropofágica face. Engulo-me.

Assassino-me a cada instante

Que, farsante, assino.

Continuo a passar

Como passam as outras faces

Dos outros.

E as faces

Nos roçamos, nos mordemos,

Nos beijamos.

Cremo-nos juntas

Sabendo, porém, ser isto

Mera ilusão

De óptica.

Um infinito vazio nos separa

Silencioso, indiferente

E eterno.

Doido e doído, nada me define.

Nem é preciso.

Não somos necessários.

Cansa-me esperar pelo nada,

Por nada.

Indefinível é tudo.

 

 

Óptica 2

 

 

As imagens são ilusórias.

A mente as cria

A partir de proteínas

Que os fótons quebram nas retinas.

 

E a vida segue transitória

No inútil passar dos dias

Cada qual com a mesma sina:

Cegos perdidos na rotina.

 

 

Optica 2
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Óptica 3

 

Minha modesta sacada

Se interpõe no meio da noite

Entre o céu e a rua.

 

Nela estou

E ali estão elas, as estrelas...

Tão longe, tão perto.

Perto, tão longe de mim,

A rua se estende.

 

Estrelas. Ergo o braço,

Meus dedos as harpejam

E ninguém passa.

 

O mundo parece denso

E tão vazio.

Um rosto agora, se houvesse,

Seria intangível.

 

Não há nuvens,

Nada se move.

Madrugada e silêncio.

E a visão da noite...

 

Não se admitem perguntas

Porque não se ouvirão respostas.

A visão é falsa.

Os sentidos todos, aliás.

Não há verdade que os olhos alcancem

Nem a mente.

 

Talvez haja ninguém

Na sacada interposta no tempo.

Dela observo-me eu, que não estou.

Observo as estrelas, que não toco,

Os rostos, que não passam.

E tudo permanece alheio

Em expiação eterna.

 

Optica 3
Noturno

 

Noturno

 

 

Vazio

Pela noite

Vago,

Pleno da noite,

Sem mim.

 

Vulto,

Sombra

Vencida,

Vinda

No vento,

De rua em rua

Ao Nada.

 

À próxima esquina,

Ao próximo bar.

Rua acima,

Vida abaixo.

 

Plúmbea nuvem,

Aquém da lua,

Vaga,

Vaga como eu,

Vagabundo.

 

Chove sobre mim,

Lava-me,

Leva-me,

Livra-me

De mim vazio.

 

Lança-me além,

Ao seio,

Ao profundo veio

Do amor de alguém.

 

E eu te louvo,

Te louvo,

Te louvo...

 

Já vais...

Já foste

Pra sempre.

Adeus.

Ninguém...

 

 

 

 

 

Inominado 8

 

 

A ciência apenas desvenda

O universo que, por ser,

Mesmo que infinito seja

Limita-se a ser o que é.

 

A arte, porém, inventa universos

Que, sendo e não sendo,

Ao apenas possível

Não se limitam.

 

Em nossa estranheza

Não suportamos limites

Nem o mero compreender.

 

Por não compreender vivemos,

Para viver criamos

E o criar nos alivia.

 

O universo que é,

Possível é apenas

Através da fantasia.

Inominado 8
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Antenas

Antenas

 

 

Vultos...

Um vulto à volta de outros,

À toa.

Tudo por nada.

Aparências,

Faces sulcadas (dor?)

Braços, pernas,

Estes, aqueles.

Os bípedes se movem

Entre malhas labirínticas.

Movem-se?

Estática,

Evanescência,

Desconexão,

Pneuma irrespirável.

Tudo se compõe como farsa.

A boca que fala, diz?

Falha.

Sons, silêncio,

Falência.

Sinais indecifráveis.

Há expressões

Nos rostos circundantes?

Irrisórias circunstâncias algébricas.

Risos, rictos equivalem-se:

Equação indeterminada.

Relações desconexas,

Reações reflexas.

O universo gela,

Os vultos ardem

Na febre inútil da existência.

Inspiremos,

Expiremos,

O que lampeja nessa treva?

Nossos beijos?

Nossos crimes?

Nossas cópulas?

 

Nosso tudo-nada

Para sempre transitório?

Inspiremos,

Expiremos,

Esperemos

Até um dia...

Vultos...

Passamos imóveis.

 

As antenas captaram

Um ruído isotrópico.

O som do tudo-nada,

Nossa essência.

A radiação de fundo

É um completo desatino.

 

Corelli

Corelli

 

Arcos sereníssimos,

Angélicos sons.

Arcângelo

Fere-nos os corações

Docemente,

Embala-nos,

Leva-nos

Aos corações amados.

Lá onde estão

Singelos jardins,

Onde flutuam as flores,

Onde a brisa é azul,

Onde os corpos se esvaem,

A vida se esquece

E sonhos,

Somente sonhos suaves

Permanecem.

Silêncio

Silêncio

 

 

Agora,

Além da hora,

Nem o bem, nem o mal -

O final,

Afinal.

 

O momento esvaído

O movimento perdido,

O ser perecido,

O ter sido mortal.

 

As vias cruzadas da vida,

A rede estendida

A malha apertada,

A dor, a sede,

A mortalha.

 

As flores no leito,

O seio perfeito,

No seio do peito

O gemido desfeito.

 

A volta à ausência,

Silêncio,

Um mar na neblina...

Lenta, da vela

A lágrima declina.

 

Agora,

No rosto,

Além do ser, flutua

O final longínquo

E-terno de um sorriso.

Por já não ser, afinal,

E por ser a inexistência,

A eternidade suavíssima

Do paraíso.

 

Museu
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Museu

 

Sólida construção antiga.

Amplas salas.

Janelas que se abrem

Para jardins geométricos.

Ornamentos rococós no teto,

Assoalho margeado por arabescos.

 

Caminho.

Meus passos

Produzem ecos

De metal e veludo.

 

Vitrines iluminadas,

Objetos expostos,

Estáticos,

Classificados

Com rigor científico.

 

Pétreos...

Passo

E respiro.

 

Insetos,

Ossos,

Conchas,

Fetos,

Ornamentos

Do Homem de Cro-Magnon.

 

Fotos dos crânios de Adão:

Java, Pequim,

Neanderthal.

(Piltdown foi um embuste)

Continuo

Vendo...

As visões que são

E as que ecoam,

Flutuantes,

Em obscuras salas

Interiores.

 

Interior meu.

Mal respiro.

Outras salas.

Ainda janelas

E jardins geométricos.

 

Múmias,

Hieróglifos,

Hieráticas máscaras.

Rictus.

Magos, mitos,

Aromas

De extintos incensos.

 

Ânforas minóicas,

Lécitos e alabastros,

Vasos fálicos de Pompéia,

Braceletes romanos,

Jônicas colunas.

 

Prossigo

E fico.

Por estas salas

O tempo não há.

 

Um meteorito.

Ferro. Pó.

A Via Láctea

Tem cem mil anos-luz de diâmetro

E gira à toa no desconhecível.

Adoremos, adoremus,

Adonai.

 

Manequins vestem

As vestes humanas

Das divindades africanas.

Não percebo

Se transito

Ou vagueio

Mediúnico...

 

Por onde vou

?

 

Os trajes fantásticos

Do feiticeiro polinésio.

As barbas de Zeus,

As orelhas do Buda,

Os olhos da Medusa,

Os sexos de Olorum,

Os caminhos errantes do Judeu,

Os mitos são meus.

 

Existo aqui

E no altar de Baal.

Os ritos

Sou eu.

 

Persisto solitário,

Solidário

Com esses outros eus

Que vivem nos estáticos objetos

Destas amplas salas

Onde as janelas

Se abrem para jardins geométricos.

 

Deles é a vida

Que o acaso faz viver

Agora em mim.

 

Fico.

Não respiro.

Fixo os olhos.

Permaneço

Pleno e alheio,

Nu e exposto

Aos olhos

Que passaram,

Passam e vão passar,

Olhando-me

Com curiosidade distante,

Lendo a pequena etiqueta

Que, aos meus pés, classifica-me

Com rigor científico.

 

Outros eus,

Meus,

Que me fitam

E depois se vão

Pelos verdes jardins geométricos

Que se estendem além das janelas.

 

 

Inominado 9


Inominado 9

 

Por que vim?

Agora perambulo pelas praias...

Só.

Só lembranças do mar alto,

Do fundo do mar de onde vim.

Lamento

Lamento

 

Agora não é mais possível.

O encanto dos tempos felizes

Para sempre se foi.

 

Agora é só esta ânsia, assim, indizível,

Esta tarde de tristes matizes,

A certeza de nada depois.

 

É o vento-lamento, envolvendo a alma,

A lágrima lenta no rosto marcado,

A morte do pássaro à beira do mar.

 

É a vida que passa e nos rouba a palma,

O amargo silêncio no seio magoado,

O soluço abafado por não poder mais voltar.

Operários

Operários

 

Apenas os dois,

A duras penas,

Às duas horas

Em pleno sol,

Martelando pedras

Da rua áspera,

Indiferente.

 

Suor.

Rostos lustrosos, marcados,

Sulcos profundos

Na rua, nos olhos,

Na alma.

A gente passa.

 

Suor.

Músculos, pele de café,

Marteletes, pás, picaretas

Sobem, descem,

Fincam, ferem

A rua, os olhos,

A alma.

A tarde passa,

A gente passa

Alheia ao suor alheio.

 

Vai passando o sol,

Vai passando a vida

Queimando peles,

Queimando pedras,

Queimando rostos,

Ilusões, ruas,

Vidas,

Corações.

 

 

 

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Suíte barroca

Suíte barroca

 

O fato é

O ato feito

No leito desfeito

Do amor imperfeito.

 

Ato fugaz

Fato mordaz

Amor incapaz

Vida falaz.

 

Falhamos

Sempre.

Juntos ou solitariamente.

 

Abraços, fugas,

Farsas, beijos e facadas.

Dança e desespero,

Canto e contraponto,

Trompas e trompetes.

 

Artificiosos fogos

Na festa aquática,

Alcoólica.

 

Copos, olhos, corpos,

Nós, risonhos e roídos,

Afogados no vazio.

 

Peixes silenciosos

No aquário,

Alheios ao nosso desvario.

Voo

 

Mar,

Mar,

Mar sereno,

Glauco mar.

Amor amargo

E doce

A se espalhar

Nos meus mares

Mais ocultos.

 

Mar, 

Mar,

Mar revolto, 

Plúmbeo mar.

Eu tão preso 

E o amor tão solto,

Nas orlas mágicas 

De um só olhar.

 

Mar, 

Mar,

Mar profundo,

Negro mar.

Os lábios do amor tão perto

E eu tão longe,

Como um pássaro perdido

Em busca do luar.

Voo

Nosferatu

 

 

Edifícios,

Noite,

Neon.

 

Ruas vagabundas

Calçadas estendidas

Lixo e sarjetas.

 

Motores, rugidos,

Canos, vapores,

Odores.

 

Bocas -

Ávidas,

Famintas,

Oferecidas.

 

Cigarros, fumaça,

Tosses, tonturas,

Torturas.

 

Passos cambaleantes

À procura.

 

Vazio

Interior letal...

Êxito.

Rostos, sorrisos,

Esgares.

 

Indagação

Hesitação

Tensão

Ereção

Medo.

Luzes piscando.

O bem, o mal.

Corpos,

Ânsia.

 

Rostos,

Sorrisos,

Bocas,

Línguas.

 

Corpos,

Ânsia

Fatal.

O frio,

O punhal.

Lamber

O neon,

Os corpos da noite,

Nus, vagabundos

Das ruas

Estendidos,

Oferecidos.

 

Revolvê-los

Envolvê-los

Comovê-los

Não os ver.

 

Revolver

A sarjeta,

O lixo.

Abraçar, gemer

Afogar-se

Em vapores,

Odores,

Bocas.

 

Túrgidas veias,

Negros silêncios,

Interiores cavernas

Vazios, vazias,

Horrores

 

Prazer mortal

Desprazer

O bem, o mal

Vai

Vem

Vai, vem

Pisca

Pisca.

 

O deserto, o beijo

O suor, a saliva

O sêmen.

Vai,

Vem.

O deserto

Deserto.

O grito,

O grito deserto.

 

A noite infecunda,

A vida sucumbida.

A alma estendida.

 

O deserto

O corpo

Os corpos

Os desertos.

 

Grito vermelho

Grito negro

Neon - pisca -

......... pisca.

O corpo vazio

À procura...

A navalha (os caninos)

O corte

O sulco, o suco

O jorro

Leitoso

O jorro

Vermelho

O Rio

Rir afinal.

 

Pisca

Pisca

Deserto

Vermelho

Deserto

Fenecimento

Dissolvência

Corte /

Negro.

 

Anúncio

Neon

Noite

Nua

Multidão.

Zumbis

À procura...

O bem, o mal

Nada

Nada...

Êxito final

Letal.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Laio

 

Quem é esse que passou

Sem que eu quisesse

E, ao passar, matou-me,

Quando o matei sem que soubesse?

 

Quem é esse que me amou

Sem que eu pedisse

E, ao pedir-me amor, perdeu-me

Por não me saber perdido?

 

Quem é esse que me viu

Sem que eu pudesse vê-lo

E, ao velar-se quedo,

Arrancou-me a luz e me lançou no medo?

Laio
Nosferatu
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Inominado 10

 

Inominado 10

 

 

 

A procissão se arrasta pelas ruas.

 

 

Beatas, velas, velhas,

 

 

Anjinhos de cetim,

 

 

Padres suando, cantos,

 

 

Trânsito engarrafado,

 

 

Os dignos membros da irmandade...

 

 

O santo quase nu, a um tronco atado,

 

 

Do andor ornamentado, fita o céu.

 

Lá voam uns pássaros em liberdade.

 

 

No silêncio das cores

Inominado 11

 

Mas se há céu,

Há sol.

Se há sol,

Há mar.

Amar

O silêncio e o som.

O som do silêncio,

O tom

Suave do céu,

Você,

Meu céu,

Mon ciel,

Mio cielo,

Solo suave a flutuar,

Violoncelo

Sobre o mar.

Inominado 11

No silêncio das cores

 

 

O corpo entre velas,

As velhas velando.

Entre as flores vermelhas

O céreo rosto, as pálidas mãos.

Duas verdes abelhas

Sobre elas, voando.

Calor, opressão.

A janela, a luz amarela,

O azul do céu, do céu, do céu...

Olhai pro chão, pro chão, pro chão!

O que dizer, Senhor, senhor?

Preces, preces,

Sem cor, sem cor.

Negros véus,

Cinzentos rosários,

Sonhar agora paraísos imaginários.

O vago murmúrio no ar,

O soluço abafado,

Una furtiva lacrima.

Sair,

Descer pro café,

Rir da piada sussurrada,

Não crer que a verdade é esta,

Esconder tudo isto,

Esconder-se,

Que isto é tudo,

Tudo isto é nada.

Brancas nuvens, brancas cruzes,

Vida em branco.

Um dia... Quando?

Quando?

O meu belo canário belga

Está lá em casa, na gaiola.

Cantando.

 

Insônia

Insônia

 

Mesa-de-cabeceira,

A rotina repousa:

Óculos, cinzeiro, cigarros,

Abajur, silêncio,

Relógio, as horas marcadas,

Por exigência dos tempos,

Em verdes desesperançdos

Algarismos transmutáveis.

Inútil sucessão de números,

Avanço ou retrocesso, tanto faz.

Por ora é só o tempo

Que sempre é e sempre falta

E nada há a fazer.

Fogos-fátuos,

O fato imutável

São os corpos deitados

Lado a lado na cama.

Repousam - esquecem - a rotina do sono.

Repousam, esquecem da rotina do corpo.

Repousam, esquecem da rotina dos anos.

Repousam, esquecem da rotina do amor.

Requiescat in pace!

O tempo passa / lugar comum.

E se esquecem e não são

E se amam e não se amam

E se dão e não se dão

E se tocam sem se tocar

E se querem não se querendo

E não vão

E vão separados e juntos

Levados e presos

Pelo tempo

Lado a lado.

 

Até quando,

Até nunca,

Até sempre...

 

Até agora, porém,

Tudo não passa, não vai além

Da desimportância

De inanimados objetos

Sobre a mesa e sobre a cama,

Jazendo, esparsos, lado a lado,

Voltados de costas.

O relógio, que também é rádio,

Olha silencioso e marca,

E nada diz.

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Inominado 12

 

Entre as flores as sombras descem,

A tarde enlanguesce,

O pássaro adormece...

Uma vaga ternura permanece.

Inominado 12
Inominado 13

Inominado 13

 

 

Resisto à tentação de crer.

Pela dúvida percebo-me

E me revelo a mim.

Crer é perder-me.

 

Espelho

Espelho

 

Sei que exibes

Do meu rosto que não vejo

Tristes marcas, antigas rugas,

Nascidas das mágoas fundas

Que a vida traça,

Das lutas, das fugas,

Dos sonhos e desejos

Que o tempo despedaça.

Sei que já foram belos

Meus olhos baços,

Por isso crio no espaço,

Entre mim e esta imagem,

Um jovem rosto antigo

Que, sem saciar-me, ilude

Como a visão cruel de uma miragem.

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Palco interior

Palco interior

 

Planos indefinidos,

Intercalados.

 

Sob cores difusas,

Calados,

Confusos atores

Atiram-nos os fatos,

No rosto,

Com os esgares dos rostos.

 

Distantes, estranhos lugares

No profundo da mente

Por onde vagamos silentes.

 

No palco instável,

Estéreis, vagos atores

Vagamos inúteis

Em meio a sonho inúteis.

 

Eis-me entre as sombras,

Percebo-me, palpo-me.

 

Eis-me,

Enfim,

Em vão.

 

Vão-se os dias que me iludem.

Outros hão de vir a me iludir.

Iludo-me sempre, pareço rir,

Rio-me e as águas e mágoas

Sempre fluentes levam-me

A nenhum lugar.

 

Medem-se os passos,

Estudam-se os gestos,

Simula-se a emoção.

É só um ensaio, sempre um ensaio...

O riso estudado

É um risco constante.

Um súbito foco de luz indesejado

Revela a lucidez.

E o riso é cortante

E fere, quando a mim se refere,

Vago ator figurante.

Vagas referências nos sonhos circundantes.

Sonho, logo com prazer me firo.

Crer que somos como os sonhos

Que planam nos planos

Inescrutáveis da mente,

É inútil. A mente

Simplesmente

Mente.

 

 

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Elsenor

Elsenor

 

Tudo, nada,

Ser e não ser...

Sempre o mesmo absurdo

Agora e sempre.

 

No esperado encontro não marcado

A hora não se encontra.

Antes do canto anunciante

O tempo é nenhum,

É sempre trevas.

 

Ver ou não ver

O espectro interior

Em múltiplos soturnos vultos

Dispersos

Pelo prisma inevitável da mente.

 

Uma sombra caminha

Junto às ameias. Quem?

Em forma humana se delineia

Quando os olhos se fecham.

 

E revelam o cenário.

Vagueia na cena desolada

E, desolada, acena. Para quem?

Quantas sombras somos, solitárias?

 

Ondas ansiosas sucidam-se

De encontro às muralhas inexistentes.

A verdespuma da ira se desfaz

Transformada em dor.

Loucas, loucas ondas

Loucas sombras, loucos eus.

Até quando, até onde?

Em que orlas, em que praias

Em que leitos

Em que braços e regaços

Não se escondem?

 

Não há mares, nem amores,

Nem regatos,

Nem um lago ensombrado.

Ninguém há para chamar

No escuro da mente,

Nas geladas águas silentes

Da dúvida.

 

Antes de ti, frágil Ofélia,

Em si afogara-se o príncipe.

 

A densa teia, a vida tensa

Dos tenuíssimos fios do sofrer é feita.

E os fios bordam

Múltiplas soturnas faces

Cambiantes

Que delineiam sempre

O mesmo inevitável semblante.

 

Tudo se perde nos descaminhos,

Todos nos perdemos.

Atraiçoa-nos a matéria,

Última manifestação do nada,

Sempre o nada.

E nada resta,

Nem o silêncio.

 

Lembra-te de mim, se não partires,

Ou de ninguém, se quiseres -

É o mesmo,

Ó tu que não sei,

Que nunca vi,

Para sempre,

Sempre,

Adeus.

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De Ouro Preto 1

De Ouro Preto 1

 

A igreja vazia.

Estiletes de sol ferindo a penumbra,

Oboés imaginários encantando o silêncio.

De uma nuvem, aos pés da virgem,

Olhou-me sorrindo o anjo estrábico.

Sorri-lhe e saí.

Ao longe, sobre os morros,

Tênues pinceladas vermelhas.

Pedras irregulares atapetam o caminho.

A velha mendiga estendeu-me as mãos.

Que mãos tão magras!

Súbito deu-me vontade

De ter morrido criança.

De Ouro Preto 2

De Ouro Preto 2

 

Igreja do Pilar.

Atravesso o adro solitário

Afogado entre dois oceanos.

Ondas verdes dos morros distantes

Sob o azul perene, doído

De tão belo.

Uns meninos correm

Num pega-pega.

Volteiam-me sua algazarra,

Seus sorrisos. Dos meus me lembro.

Seus olhos mansos

Como os sons distantes desses sinos

Dos seus me lembro

Agora tão distantes.

 

Não os posso fitar

E como preciso vê-los,

Com preciso

Que me fitem os meus.

Ah! Nossa Senhora do Pilar,

Deixa eu ver de novo

Aqueles olhos dela,

Deixa que eles venham

De novo me acalentar.

 

De Ouro Preto 3

De Ouro Preto 3

 

Sigo por estas ladeiras

Tortuosas, cansativas,

Estreitas

E tão belas.

E, súbito, a minha cruz

Se faz tão leve.

Deus, decerto,

Andou por aqui.

Casal Etrusco

(Os esposos de Cerveteri)

 

Repousados sobre o infinito mistério

Os corpos se estendem tranquilos

E, soerguidos os troncos,

Em terna cumplicidade sorriem.

Para nós sorriem, que os fitamos,

Como se nos fitassem seus olhos amendoados

De ancestral beleza,

Nos convidando ao encontro.

Convidam-nos os gestos fixados e etéreos

De suas mãos sensibilíssimas.

Longilíneos corpos, mãos longilíneas,

Harpejando em terracota

Os sons silenciosos da esperança.

Em nosso silêncio esperamos...

Com nossos olhos amedrontados

Por quem amamos e desconhecemos,

Esperamos pelo momento, além do tempo,

Em que, reclinados no cliné,

Repousaremos também nossos corpos fatigados,

Nossos corpos protegidos, protetores,

Envolvidos, envolventes,

Como um amor, somente.

Como se dois fossem um apenas

Reclinado no cliné,

Repousado sobre o infinito mistério,

Sorrindo para sempre

Por ser parte já do infinito mistério.

Casal Etrusco
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A queda

A queda

 

Vento

Espaço

Azul

Mormaço

Poste que vai

Poste que vem

Que vai

E que vem

Rodas de aço

Rodando

Retetém

Retetém

Retetém

Porta escancarada

Sol

Suor pela cara

Braço esticado

Braço dormente

Olhos dependurados

Sobre dormentes

Dormente que vai

Dormente que vem

Que vai

E que vem

Que vai

E que vem

Fio preto que sobe

Fio preto que desce

Que sobe

E que desce

Fio preto, filhinho,

Gurizinho

Que já é gente

E é ninguém

Quem o vê?

Quem o quer?

De onde vem?

De quem vem?

E se vem,

Onde o bem?

Retetém

Retetém

Retetém

Olha o céu!

Olha a pipa!

Olha a guimba!

Olha os peitos dela!

Olha a bola!

Olha a bola!

Alha aqui, ó!

Olha o pão!

Olha o poste!

Olha o poste que vem!

Que vem!

Que vem!

 

Poste

Preto

Tudo preto...

 

Braços dormentes

Dançando no ar...

Pernas pendentes

No traço

Do trilho de aço...

Cabeça fendida

Entre as fendas

Dos dormentes...

Céu azul

Mar vermelho

Mar morto

Mar de lama

Mar de gente

Olhando.

 

Olhos escancarados

Inocentes

Perplexos

Injustiçados

Olhos midriáticos

Que mal viram a vida

E não verão jamais

O Adriático.

 

Sonata nº 1

Sonata nº 1

 

Os olhos acordam e, de leve, inseguros,

Buscam na treva circundante

Traços definidores, perfis inteligíveis,

Esboços de cores.

Olhos caçadores à espera da manhã.

 

No escuro vazio, denso é o medo – e oprime.

Os olhos cassados estão onde não sabem estar

E querem alívio no seio das formas.

 

As mãos, cães rastrejadores, farejam ansiosas

O leito, o lençol, a pele, a neblina do nada...

Súbito, um pálido risco desvenda

A fenda da cortina; há vida.

O corpo respira, o mundo é conexo, um pássaro acorda,

As mãos, inseguras, de leve tocam o sexo.

Sonata nº 2

Sonata nº 2

 

 

O sol transforma a persiana

Numa pauta impressa no chão.

Sem clave, sem notas, sem barras...

O silêncio preenche o quarto

E descompassa o coração.

 

Sobre o mármore da mesinha

O relógio, irônico, finge marcar o tempo

Cujas marcas se exibem no pergaminho das mãos.

 

As sombras das mãos harpejam a pauta.

Em vão: cordas inatingíveis, grade inflexível,

Mãos livres e aprisionadas.

O sol se esvai, desfaz-se a impressão.

Persiste o silêncio, também o relógio
E o desconsolado coração.

 

Sonata nº 3

Sonata nº 3

 

A luz do abajur não quebra a penumbra.

Delicadamente o incenso adocicado

Desprende-se do turíbulo.

A angústia  e a fumaça azulada em silêncio

Dançam sinuosas e ascendentes.

 

Diante do pequeno Buda sobre a cômoda

A respiração é lenta, compassada,

Tentando, muda, imitar um mantra.

 

Pequeno Buda de prata enigmático a sorrir...

Por ironia talvez, talvez por compaixão,

Talvez por fitar o nada,

Por fitar de seu argênteo, abúlico nirvana,

O corpo vivo, preso às malhas do sansara,

Nu, em agonia, afundado na poltrona.

Sonata nº 4

Sonata nº 4

 

 

 

Flores de prata entrançadas

Emolduram a foto sépia.

Sobre a ilha de crochê na mesa oval

O porta-retrato é um farol antigo:

A jovem tímida sorri com olhos que lampejam.

 

Densa é a noite no mar interior,

ansiosa a busca por olhos que nos vejam

E que, sorrindo, de nossa dor se compadeçam.

 

Os olhos nossos, barcos velados, erram pela sala,

Circundando enigmas, objetos silenciosos

Imersos na ilusão oceânica do tempo.

A jarra de cristal, estatuetas, quadros, a mesa oval...

Os olhos nossos aportam naqueles que já não são.
A quietude revela que a jovem não sorriu em vão.

 

Sonata nº 5

Sonata nº 5

 

Sono. As palavras flutuam em desalinho sobre a página

As letras, pequenos insetos, roem o sentido do texto.

Os olhos invadem o ensaio do sonho. Um leve tremor.

A mão direita se abre, deixando pender o livro,

A outra, autônoma, busca o interruptor.

 

Súbito os olhos se veem de volta:

A cúpula do abajur, o leito, o corpo de lado,

O silêncio do quarto, a solidão, o temor.

 

A mão interrompe a busca.

A luz amarela e a percepção do ar inspirado

Asseguram a existência, o tempo-espaço do ser.

Não há alívio, porém, no gesto inacabado.

A mão hesitante perpetua a dúvida.

O que perguntar não se sabe, tampouco o que responder...

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Modulações

Modulações

 

?

Ar

Som?

Sílaba?

Expiração?

Inspiração?

M - fonema.

M ar

Ar-mar:

Prover de sons

E silêncios

Os sentidos internos

Tramar

As tramas bizarras da mente

Conexões coerentes

A morte. O temor.

O amor.

Há mar?

No ar

Ondulações do nada

Tudo preeenchem.

Sons externos

Tons, timbres,

Escalas, ascensões

Quedas

Gritos

Ritos

Rostos

O tremer. O terror.

Dramas da mente

Incoerente.

As faces tremendas

De ignotos deuses

Flutuando nas trevas

Das águas primeras,

Ar

Faces mudas

Inspiração, expiração,

Atmosfera

E além

Faces planas,

Superfícies imaginárias

Estendidas para sempre.

Ondulações eletromagnéticas

Amplo espectro

Imensurável fantasma divino

Enganador eterno, afogando

Sombras passantes

Sobre a face

Irregular do planeta

Delirantes sombras

Arfantes

Em fugas monótonas

Os mesmos temas

Reintroduzindo-se

De hiato em hiato

No espaço-tempo

Ar

Mar

Armar

As tramas

Das entranhas

Ser e temer e tremer

Ver o ser se perder

E não viver de amar

Para sempre

Nas trevas do nada?

Não!

Infinito é o mar

Que nos limites do ser repousa.

Marcas sulcadas nas faces,

Abrigos.

Lágrimas, não de dor,

Nos veios da pele,

Os rios da vida fecundos,

Sinuosos,

Em busca do mar

Ar

Ah

!

 

                        © 2016 O poeta.                            

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