Estruturas poéticas
Tirésias
Os claros caminhos
Se perdem nas brumas.
Só ele, o sábio, os vê
E por eles, livre, caminha,
Com seus olhos - neblina.
Dele é o dom e a verdade
Que paira longe do tempo
Na claridade das trevas.
Nossa é a dor e a sina
Do longo tempo de penas
Nas trevas da claridade.
Quadro abstrato
Limites retangulares
Iluminados,
Iridescentes,
Instigando.
Cores abruptas,
Puras
Rupturas.
Desfiguras.
Linhas
Cruzadas,
Falsas
Urdiduras
Soltas nos ares.
Cartesianas
Abscissas
Abismais.
Líneas
Lineares
Ares
Ars...
Kouros
Pétreo despido corpo
Diante de mim desperto,
O que me despertas?
Percebo
A levíssima ironia
Que te orna os lábios.
Por que?
Por que me fitas?
Não, não me fitas...
O olhar
De teus olhos amendoados,
Sorrindo, transpassa-me,
Fere-me por me ignorar
E se perde
No oracular segredo
De um tempo ausente,
Onde nunca estive
E jamais poderei estar.
Invejo o que és
Não sendo. Invejo
A arquetípica simetria
De tua milenar juventude;
A exposta clareza
De tua perpétua virilidade:
A sólida liberdade
De teu corpo idealizado.
Invejo-te...
Eu, que sou...
Mas, quem sou?
Sou quem olha,
E, ao olhar-te,
Percebo
Meus limites transitórios.
O levíssimo sorriso
Que, por ironia,
Me orna os lábios,
Orla a tristeza
Do crepúsculo inevitável.
O esboço estático
Do teu passo,
Jovem efebo,
É teu eterno recomeço.
Eu passo
E envelheço.
Tua verdade é, e nem existe.
Eis porque tanto te desejo:
Tu persistes,
Eu pereço.
Koré
Jovem mulher antiga
De tranças ornada
E arcaico sorriso
Fascina-me olhar-te.
Imagino que me olhas
E, por querer, me ofertas
Os segredos de tua arte.
Não, não me queres...
Tu és quantas mulheres?
Dói-me ver que te ocultas
Sob o indefinível matiz
Das dobras de tua veste.
O que, em silêncio,
Tua forma declara
E, delicada, não diz?
À tua frente imóvel,
Transido de medo,
Ansioso espero
Quero o claro teu corpo
Se revele
Para sonhá-lo inteiro
Sobre o mármore da minha pele.
Vejo-te em parte,
Partido me vejo,
Em fragmentos me perco
E não vejo onde estou.
Devo partir para encontrar-me
E recriar no encontro
As partes que o tempo roubou...
Refazer os teus braços,
Envolver-me com eles,
Sentir tuas mãos renascidas
Afagar-me os cabelos.
Dói-me ver que ocultas
Sob as dobras do meu passado,
Tua imagem silente
E que não posso alcançá-la
Sem descobrir meu presente.
Mas te olho
E, por te olhar,
Me vejo eterno contigo.
Eis o que me ofertas.
Tua arte é meu abrigo.
Em ti estarei para sempre
Mesmo quando nada mais for.
E despido repousarei em teu seio
Como no seio do paraíso.
Serei então tuas tranças,
Olharei por teus olhos
E ornarei tua boca
Com a tranquila dor do meu sorriso.
Escultura
(impressões de uma escultura de Jan Trmal)
Três
Blocos
Superpostos.
Limitadas
Fixas
Superfícies
Ondulantes
Adulando
O Olho
Que olha
A nudez
Do corpo
Sugerido
Surgido
Súbito
E nítido
Excitando
O olho
Que olha
Agora
Atento.
Bloco abaixo.
Entreabertas
Coxas
Sulco
Sede
Centro
Do olho
Que olha
Faminto -
Terracota
Volúpia.
Bloco ao meio.
Ventre
Umbigo
Semeadura
Regaço
Repouso
Do olho
Que olha
Nostálgico -
Terracota
Ternura-madre.
Bloco acima.
Seios
Perfeitos
Perfeitas
Mãos pousadas
Meios braços
Mamilos
Lírios
Leito
E alimento
Do olho
Que olha
Sedento
E saciado -
Terracota
Amor.
Trindade
Mulher
Deidade
Unificada
No olho
Que olha
E quer
E crê
Que a vida
Quando é assim
Amada
Terna
Terra
Feminina
Eternizada.
Satie
Erik,
Rico
Satírico
Sossegadamente
Onírico-insolente...
Amada,
Passeio por teu corpo.
Em minhas mãos teu seios
- Morceaux en forme de poire -
Teu envolvente olhar,
Teu abraço.
Vou pelos ares
Cercado de calipígios querubins,
Entre nuvens azuladas,
Entre rosas, margaridas e jasmins.
Brisa, movimento,
Sussurros e silêncios.
Fiquemos assim estáticos,
Sentindo passar - neste ir e vir -
Tão fugazes momentos,
Fugacíssimos.
Ah! Ter-te, dar-me,
Palpar com arte
Recônditas partes
- Veritables prèludes flasques.
Ficar assim, ficar
Ficar e ficar
Sempre, querendo o fim
E não querendo
- Desespoir agrèable -
Minha vida,
Vida, a vida
- Chapitres tournés en tous sens...
O tilintar, o lilintar cruel!
Ó tu, brutal, trágico,
Grotesco, deselegante despertador,
Me acordas sem qualquer cerimônia,
Me fazes voltar
A este mundo concreto
Cheio de acrimônia.
Fito o teto:
Tua imagem-mito,
Amada,
Se desfaz no ar...
Ignóbil sonoro objeto,
Abjeto. Por tua causa
Eis o que vejo:
A vida, vidinha fria,
Sem nenhum sentido.
Flacidíssima
- Pour un chien -
eis o que vejo...
Enfim, amada,
Restam-me os bocejos,
Disformes resquícios
Dos nossos inexistentes beijos.
Escala
Amor
Há?
A
Morte
Há.
Temor
Só...
Por
Ter
Só
A morte
Do amor.
Dó,
Dor,
Sim,
Só
Ao redor
De si...
Sol lá,
Aqui não.
Por do sol.
Coração -
Solo
Vão.
Pó
Sob
O sol.
Amar?
Amor?
A morte?
Só?
O sol?
Oh!
O planeta
Gira
Inutilmente.
Inútil
Mente.
Só
Há
Nada.
Espelho
Como um gato cauteloso
Os olhos passeiam lentos
Na superfície do enigma.
A forma se delineia
Na penumbra disfarçada
E, sorrindo no silêncio,
Se desfaz, não capturada.
As mãos avançam no ar,
As rugas das mãos ferem o olhar.
Há nada,
Há dor,
A dor do tempo que é nada.
O vulto não vê
E nos vê
Ou finge se ver
E cego se afasta...
Longe,
Num inexistente jardim,
Jazem as colunas
De um templo em ruínas.
Um pássaro pousa
Na quietude intocável
...e cego se afasta
E se desfaz, não capturado,
Como se desfazem os olhos,
Aprisionados no fim.
Há nada para ver.
Perplexidade, desalento.
Estóicos, os olhos
Se fecham, lentos,
E se afogam
Sem lágrimas
Nas profundezas do enigma.
Gilles
O ser é impessoal
E se dispersa em todos.
Antes de Daguèrre,
Muito antes,
E antes de eu existir,
Watteau retratou-me
Com interior perfeição.
Gravuras de Goeldi
(impressões sobre uma exposição)
Brancos traços
Retilíneos,
Delicadamente rudes,
Arranham a negra,
Negra noite.
E criam
Amplos cenários
Confinados
Na calma
Imensidão da dor.
Cenas:
Sob a chuva,
Sob as luas,
Sob sóis noturnos
Movem-se encurvadas
Estáticas figuras
Solitariamente unidas
Na trama estranha
De luminescências
Obscuras.
Pequenos atos
Em magia fixados:
O cepo, o cutelo,
Os peixes e os peixeiros
Arrancando-lhes as entranhas.
Um homem
Sulca a madeira
E molda
Sulcados rostos anônimos
Perplexos,
Que nos fitam
E que, perplexos,
Fitamos.
Interroga-se sem se perguntar
O que se busca
Nesses traços...
O que se vê
Não vendo...
O que se sorve
Dessa obra
Que preeenche e asfixia...
Dor calma
E imensa,
Pétrea delicadeza.
O bicho-preguiça,
O clown,
O príncipe idiota.
Ansiedade
Num quarto, só.
Só?
Oceânica vida
Dor irada
E intensa.
E, súbito,
O grande peixe vermelho,
Repousado,
Nos concede alívio.
E o generoso guarda-chuva
Aberto,
Como um rubro,
Rubro coração
Nos protege da negra,
Negra noite...
E nos aquieta,
Repousados
Em paz
Silenciosa
Imensa.
Esfinge
Devora-me sem decifrar-me,
Pétrea mulher-alada,
Pois de mim nada quero
A não ser querer-te
Como quero que me queiras.
Devolva-me a mim
Ao devorar-me
Pois onde estou não sou
Senão as penas por não encontrar-te.
Desfaça as tramas que me sufocam
Ao devorar-me
Pois ao desfazer-me no teu ventre indecifrável
Nada serei senão o desvendar-me
E - quem sabe - então saberei amar-te.
Inominado 1
Manhã.
Abro a janela.
Lá fora a vida
Que passa
Que passa
E nada me revela.
Inominado 2
Entre os lírios
O minúsculo caixão branco
Encerra uma possibilidade.
Por ela choram os círios.
Inominado 3
Vida, dádiva
Divina!
Dádiva?
Divina?
Dúvida
Devida.
Decida!
Vida:
Dever?
Devir?
Delírio?
Descida
Desde o entrar
Até a saída.
E deus nunca houve
Que estivesse a olhar.
Inominado 4
Quebrou-se a xícara
De porcelana da China,
Porcelana fina.
Não importa
Eu não gosto de chá.
Inominado 5
Manhã de repente!
Ergo-me, invade-me o sol.
Ergo sum!
Invadem-me fátuas crenças.
Cogito em mim crescer,
Crescer com o nascente…
No quarto o armário, o espelho
Na manhã de repente
Desmente:
Em mim o sol é poente.
Inonimado 6
De joelhos sobre o mausoléu
O anjo de mármore
Olha o céu
E chora por alguém
Por quem
Agora
Ninguém mais
Chora.
Inominado 7
O espantalho solitário
Em êxtase, crucificado,
Abraça o espaço
E lhe suplica os pássaros.
Entardecer
Em nossos olhos
Guardemos estas lembranças.
E voemos pra longe
Como dois pássaros ladrões.
Depois fiquemos, assim, pairando,
Entre as nuvens tênues das ilusões.
Finjamos que este azul todo
É nosso pra sempre.
E que pra sempre estaremos
A ouvir suaves canções.
Esqueçamos que tudo
É só um breve instante.
Um momento fugidio,
Que se esvai,
Que a nossa vida
É esse fugaz lampejo
Que logo se desfaz em nada
E não retorna mais.
Ar refrigerado
Fere o silêncio
Da sala acrílica,
Polivinílica, retilínea,
Plástica, alumínica,
A expiração sempiterna
Das guelras metálicas
Que margeiam o teto.
Sussurro suavíssimo,
Limiar, cartesiano,
Paralelo às abscissas
Até o infinito.
Olhos meus entorpecidos
Submersos no ar frio purificado
Entre lisas brancas paredes
Como peixes confinados
flutuam, fitam
O musgo verde do carpete
Os sóis pendentes dos spots
E a emoldurada reprodução
De duas mulheres de Gauguin.
Breve retângulo, adorno irônico.
Fitam-nas meus frustrados olhos
Súbito encharcados.
Fitam-me elas compadecidas
Do além do ouro de seus corpos
Fitam-me de lá,
Vivas,
Depois do fim das abscissas.
Fitam-me
Da policromia da vida
Que se desfaz em formas
E se refaz em flores, em praias,
Em corpos e sexos
Além desta ansiedade.
Fitam-me de lá, livres,
No calor da vida
Tão longe, irremediavelmente.
Óptica 1
Estou doido ou doído?
Tido e havido
Como o tal que nunca fui,
Não me relevo
Nem me revelo.
Iludo-me.
Os fatos são farsas,
Os atos são falhos por querer.
A consciência é só isto:
Um absurdo suceder
De espalhafatos.
Passo por mim e por todos
E nada há de novo -
Todos fingimos sempre
O que sempre fingimos ser.
Qualquer semelhança entre mim
E o que de mim supõem,
Por vaga inconfidência,
Ou mera desconfiança,
Terá sido inútil coincidência.
Minhas faces cambiantes
Passeiam entediadas
Pelos olhos dos outros.
Atuo.
Aturo.
Aturo-me ator.
Os atos são farsas,
Os fatos são falhos
As faces são falsas.
Tudo farsa.
A farsa flácida face,
A farsa plácida face,
A farsa plástica face,
A farsa cínica face,
A farsa lúbrica face,
A farsa lúgubre face,
A face fantasma
Da ópera.
Antropofágica face. Engulo-me.
Assassino-me a cada instante
Que, farsante, assino.
Continuo a passar
Como passam as outras faces
Dos outros.
E as faces
Nos roçamos, nos mordemos,
Nos beijamos.
Cremo-nos juntas
Sabendo, porém, ser isto
Mera ilusão
De óptica.
Um infinito vazio nos separa
Silencioso, indiferente
E eterno.
Doido e doído, nada me define.
Nem é preciso.
Não somos necessários.
Cansa-me esperar pelo nada,
Por nada.
Indefinível é tudo.
Óptica 2
As imagens são ilusórias.
A mente as cria
A partir de proteínas
Que os fótons quebram nas retinas.
E a vida segue transitória
No inútil passar dos dias
Cada qual com a mesma sina:
Cegos perdidos na rotina.
Óptica 3
Minha modesta sacada
Se interpõe no meio da noite
Entre o céu e a rua.
Nela estou
E ali estão elas, as estrelas...
Tão longe, tão perto.
Perto, tão longe de mim,
A rua se estende.
Estrelas. Ergo o braço,
Meus dedos as harpejam
E ninguém passa.
O mundo parece denso
E tão vazio.
Um rosto agora, se houvesse,
Seria intangível.
Não há nuvens,
Nada se move.
Madrugada e silêncio.
E a visão da noite...
Não se admitem perguntas
Porque não se ouvirão respostas.
A visão é falsa.
Os sentidos todos, aliás.
Não há verdade que os olhos alcancem
Nem a mente.
Talvez haja ninguém
Na sacada interposta no tempo.
Dela observo-me eu, que não estou.
Observo as estrelas, que não toco,
Os rostos, que não passam.
E tudo permanece alheio
Em expiação eterna.
Noturno
Vazio
Pela noite
Vago,
Pleno da noite,
Sem mim.
Vulto,
Sombra
Vencida,
Vinda
No vento,
De rua em rua
Ao Nada.
À próxima esquina,
Ao próximo bar.
Rua acima,
Vida abaixo.
Plúmbea nuvem,
Aquém da lua,
Vaga,
Vaga como eu,
Vagabundo.
Chove sobre mim,
Lava-me,
Leva-me,
Livra-me
De mim vazio.
Lança-me além,
Ao seio,
Ao profundo veio
Do amor de alguém.
E eu te louvo,
Te louvo,
Te louvo...
Já vais...
Já foste
Pra sempre.
Adeus.
Ninguém...
Inominado 8
A ciência apenas desvenda
O universo que, por ser,
Mesmo que infinito seja
Limita-se a ser o que é.
A arte, porém, inventa universos
Que, sendo e não sendo,
Ao apenas possível
Não se limitam.
Em nossa estranheza
Não suportamos limites
Nem o mero compreender.
Por não compreender vivemos,
Para viver criamos
E o criar nos alivia.
O universo que é,
Possível é apenas
Através da fantasia.
Antenas
Vultos...
Um vulto à volta de outros,
À toa.
Tudo por nada.
Aparências,
Faces sulcadas (dor?)
Braços, pernas,
Estes, aqueles.
Os bípedes se movem
Entre malhas labirínticas.
Movem-se?
Estática,
Evanescência,
Desconexão,
Pneuma irrespirável.
Tudo se compõe como farsa.
A boca que fala, diz?
Falha.
Sons, silêncio,
Falência.
Sinais indecifráveis.
Há expressões
Nos rostos circundantes?
Irrisórias circunstâncias algébricas.
Risos, rictos equivalem-se:
Equação indeterminada.
Relações desconexas,
Reações reflexas.
O universo gela,
Os vultos ardem
Na febre inútil da existência.
Inspiremos,
Expiremos,
O que lampeja nessa treva?
Nossos beijos?
Nossos crimes?
Nossas cópulas?
Nosso tudo-nada
Para sempre transitório?
Inspiremos,
Expiremos,
Esperemos
Até um dia...
Vultos...
Passamos imóveis.
As antenas captaram
Um ruído isotrópico.
O som do tudo-nada,
Nossa essência.
A radiação de fundo
É um completo desatino.
Corelli
Arcos sereníssimos,
Angélicos sons.
Arcângelo
Fere-nos os corações
Docemente,
Embala-nos,
Leva-nos
Aos corações amados.
Lá onde estão
Singelos jardins,
Onde flutuam as flores,
Onde a brisa é azul,
Onde os corpos se esvaem,
A vida se esquece
E sonhos,
Somente sonhos suaves
Permanecem.
Silêncio
Agora,
Além da hora,
Nem o bem, nem o mal -
O final,
Afinal.
O momento esvaído
O movimento perdido,
O ser perecido,
O ter sido mortal.
As vias cruzadas da vida,
A rede estendida
A malha apertada,
A dor, a sede,
A mortalha.
As flores no leito,
O seio perfeito,
No seio do peito
O gemido desfeito.
A volta à ausência,
Silêncio,
Um mar na neblina...
Lenta, da vela
A lágrima declina.
Agora,
No rosto,
Além do ser, flutua
O final longínquo
E-terno de um sorriso.
Por já não ser, afinal,
E por ser a inexistência,
A eternidade suavíssima
Do paraíso.
Museu
Sólida construção antiga.
Amplas salas.
Janelas que se abrem
Para jardins geométricos.
Ornamentos rococós no teto,
Assoalho margeado por arabescos.
Caminho.
Meus passos
Produzem ecos
De metal e veludo.
Vitrines iluminadas,
Objetos expostos,
Estáticos,
Classificados
Com rigor científico.
Pétreos...
Passo
E respiro.
Insetos,
Ossos,
Conchas,
Fetos,
Ornamentos
Do Homem de Cro-Magnon.
Fotos dos crânios de Adão:
Java, Pequim,
Neanderthal.
(Piltdown foi um embuste)
Continuo
Vendo...
As visões que são
E as que ecoam,
Flutuantes,
Em obscuras salas
Interiores.
Interior meu.
Mal respiro.
Outras salas.
Ainda janelas
E jardins geométricos.
Múmias,
Hieróglifos,
Hieráticas máscaras.
Rictus.
Magos, mitos,
Aromas
De extintos incensos.
Ânforas minóicas,
Lécitos e alabastros,
Vasos fálicos de Pompéia,
Braceletes romanos,
Jônicas colunas.
Prossigo
E fico.
Por estas salas
O tempo não há.
Um meteorito.
Ferro. Pó.
A Via Láctea
Tem cem mil anos-luz de diâmetro
E gira à toa no desconhecível.
Adoremos, adoremus,
Adonai.
Manequins vestem
As vestes humanas
Das divindades africanas.
Não percebo
Se transito
Ou vagueio
Mediúnico...
Por onde vou
?
Os trajes fantásticos
Do feiticeiro polinésio.
As barbas de Zeus,
As orelhas do Buda,
Os olhos da Medusa,
Os sexos de Olorum,
Os caminhos errantes do Judeu,
Os mitos são meus.
Existo aqui
E no altar de Baal.
Os ritos
Sou eu.
Persisto solitário,
Solidário
Com esses outros eus
Que vivem nos estáticos objetos
Destas amplas salas
Onde as janelas
Se abrem para jardins geométricos.
Deles é a vida
Que o acaso faz viver
Agora em mim.
Fico.
Não respiro.
Fixo os olhos.
Permaneço
Pleno e alheio,
Nu e exposto
Aos olhos
Que passaram,
Passam e vão passar,
Olhando-me
Com curiosidade distante,
Lendo a pequena etiqueta
Que, aos meus pés, classifica-me
Com rigor científico.
Outros eus,
Meus,
Que me fitam
E depois se vão
Pelos verdes jardins geométricos
Que se estendem além das janelas.
Inominado 9
Por que vim?
Agora perambulo pelas praias...
Só.
Só lembranças do mar alto,
Do fundo do mar de onde vim.
Lamento
Agora não é mais possível.
O encanto dos tempos felizes
Para sempre se foi.
Agora é só esta ânsia, assim, indizível,
Esta tarde de tristes matizes,
A certeza de nada depois.
É o vento-lamento, envolvendo a alma,
A lágrima lenta no rosto marcado,
A morte do pássaro à beira do mar.
É a vida que passa e nos rouba a palma,
O amargo silêncio no seio magoado,
O soluço abafado por não poder mais voltar.
Operários
Apenas os dois,
A duras penas,
Às duas horas
Em pleno sol,
Martelando pedras
Da rua áspera,
Indiferente.
Suor.
Rostos lustrosos, marcados,
Sulcos profundos
Na rua, nos olhos,
Na alma.
A gente passa.
Suor.
Músculos, pele de café,
Marteletes, pás, picaretas
Sobem, descem,
Fincam, ferem
A rua, os olhos,
A alma.
A tarde passa,
A gente passa
Alheia ao suor alheio.
Vai passando o sol,
Vai passando a vida
Queimando peles,
Queimando pedras,
Queimando rostos,
Ilusões, ruas,
Vidas,
Corações.
Suíte barroca
O fato é
O ato feito
No leito desfeito
Do amor imperfeito.
Ato fugaz
Fato mordaz
Amor incapaz
Vida falaz.
Falhamos
Sempre.
Juntos ou solitariamente.
Abraços, fugas,
Farsas, beijos e facadas.
Dança e desespero,
Canto e contraponto,
Trompas e trompetes.
Artificiosos fogos
Na festa aquática,
Alcoólica.
Copos, olhos, corpos,
Nós, risonhos e roídos,
Afogados no vazio.
Peixes silenciosos
No aquário,
Alheios ao nosso desvario.
Voo
Mar,
Mar,
Mar sereno,
Glauco mar.
Amor amargo
E doce
A se espalhar
Nos meus mares
Mais ocultos.
Mar,
Mar,
Mar revolto,
Plúmbeo mar.
Eu tão preso
E o amor tão solto,
Nas orlas mágicas
De um só olhar.
Mar,
Mar,
Mar profundo,
Negro mar.
Os lábios do amor tão perto
E eu tão longe,
Como um pássaro perdido
Em busca do luar.
Nosferatu
Edifícios,
Noite,
Neon.
Ruas vagabundas
Calçadas estendidas
Lixo e sarjetas.
Motores, rugidos,
Canos, vapores,
Odores.
Bocas -
Ávidas,
Famintas,
Oferecidas.
Cigarros, fumaça,
Tosses, tonturas,
Torturas.
Passos cambaleantes
À procura.
Vazio
Interior letal...
Êxito.
Rostos, sorrisos,
Esgares.
Indagação
Hesitação
Tensão
Ereção
Medo.
Luzes piscando.
O bem, o mal.
Corpos,
Ânsia.
Rostos,
Sorrisos,
Bocas,
Línguas.
Corpos,
Ânsia
Fatal.
O frio,
O punhal.
Lamber
O neon,
Os corpos da noite,
Nus, vagabundos
Das ruas
Estendidos,
Oferecidos.
Revolvê-los
Envolvê-los
Comovê-los
Não os ver.
Revolver
A sarjeta,
O lixo.
Abraçar, gemer
Afogar-se
Em vapores,
Odores,
Bocas.
Túrgidas veias,
Negros silêncios,
Interiores cavernas
Vazios, vazias,
Horrores
Prazer mortal
Desprazer
O bem, o mal
Vai
Vem
Vai, vem
Pisca
Pisca.
O deserto, o beijo
O suor, a saliva
O sêmen.
Vai,
Vem.
O deserto
Deserto.
O grito,
O grito deserto.
A noite infecunda,
A vida sucumbida.
A alma estendida.
O deserto
O corpo
Os corpos
Os desertos.
Grito vermelho
Grito negro
Neon - pisca -
......... pisca.
O corpo vazio
À procura...
A navalha (os caninos)
O corte
O sulco, o suco
O jorro
Leitoso
O jorro
Vermelho
O Rio
Rir afinal.
Pisca
Pisca
Deserto
Vermelho
Deserto
Fenecimento
Dissolvência
Corte /
Negro.
Anúncio
Neon
Noite
Nua
Multidão.
Zumbis
À procura...
O bem, o mal
Nada
Nada...
Êxito final
Letal.
Laio
Quem é esse que passou
Sem que eu quisesse
E, ao passar, matou-me,
Quando o matei sem que soubesse?
Quem é esse que me amou
Sem que eu pedisse
E, ao pedir-me amor, perdeu-me
Por não me saber perdido?
Quem é esse que me viu
Sem que eu pudesse vê-lo
E, ao velar-se quedo,
Arrancou-me a luz e me lançou no medo?
Inominado 10
A procissão se arrasta pelas ruas.
Beatas, velas, velhas,
Anjinhos de cetim,
Padres suando, cantos,
Trânsito engarrafado,
Os dignos membros da irmandade...
O santo quase nu, a um tronco atado,
Do andor ornamentado, fita o céu.
Lá voam uns pássaros em liberdade.
Inominado 11
Mas se há céu,
Há sol.
Se há sol,
Há mar.
Amar
O silêncio e o som.
O som do silêncio,
O tom
Suave do céu,
Você,
Meu céu,
Mon ciel,
Mio cielo,
Solo suave a flutuar,
Violoncelo
Sobre o mar.
No silêncio das cores
O corpo entre velas,
As velhas velando.
Entre as flores vermelhas
O céreo rosto, as pálidas mãos.
Duas verdes abelhas
Sobre elas, voando.
Calor, opressão.
A janela, a luz amarela,
O azul do céu, do céu, do céu...
Olhai pro chão, pro chão, pro chão!
O que dizer, Senhor, senhor?
Preces, preces,
Sem cor, sem cor.
Negros véus,
Cinzentos rosários,
Sonhar agora paraísos imaginários.
O vago murmúrio no ar,
O soluço abafado,
Una furtiva lacrima.
Sair,
Descer pro café,
Rir da piada sussurrada,
Não crer que a verdade é esta,
Esconder tudo isto,
Esconder-se,
Que isto é tudo,
Tudo isto é nada.
Brancas nuvens, brancas cruzes,
Vida em branco.
Um dia... Quando?
Quando?
O meu belo canário belga
Está lá em casa, na gaiola.
Cantando.
Insônia
Mesa-de-cabeceira,
A rotina repousa:
Óculos, cinzeiro, cigarros,
Abajur, silêncio,
Relógio, as horas marcadas,
Por exigência dos tempos,
Em verdes desesperançdos
Algarismos transmutáveis.
Inútil sucessão de números,
Avanço ou retrocesso, tanto faz.
Por ora é só o tempo
Que sempre é e sempre falta
E nada há a fazer.
Fogos-fátuos,
O fato imutável
São os corpos deitados
Lado a lado na cama.
Repousam - esquecem - a rotina do sono.
Repousam, esquecem da rotina do corpo.
Repousam, esquecem da rotina dos anos.
Repousam, esquecem da rotina do amor.
Requiescat in pace!
O tempo passa / lugar comum.
E se esquecem e não são
E se amam e não se amam
E se dão e não se dão
E se tocam sem se tocar
E se querem não se querendo
E não vão
E vão separados e juntos
Levados e presos
Pelo tempo
Lado a lado.
Até quando,
Até nunca,
Até sempre...
Até agora, porém,
Tudo não passa, não vai além
Da desimportância
De inanimados objetos
Sobre a mesa e sobre a cama,
Jazendo, esparsos, lado a lado,
Voltados de costas.
O relógio, que também é rádio,
Olha silencioso e marca,
E nada diz.
Inominado 12
Entre as flores as sombras descem,
A tarde enlanguesce,
O pássaro adormece...
Uma vaga ternura permanece.
Inominado 13
Resisto à tentação de crer.
Pela dúvida percebo-me
E me revelo a mim.
Crer é perder-me.
Espelho
Sei que exibes
Do meu rosto que não vejo
Tristes marcas, antigas rugas,
Nascidas das mágoas fundas
Que a vida traça,
Das lutas, das fugas,
Dos sonhos e desejos
Que o tempo despedaça.
Sei que já foram belos
Meus olhos baços,
Por isso crio no espaço,
Entre mim e esta imagem,
Um jovem rosto antigo
Que, sem saciar-me, ilude
Como a visão cruel de uma miragem.
Palco interior
Planos indefinidos,
Intercalados.
Sob cores difusas,
Calados,
Confusos atores
Atiram-nos os fatos,
No rosto,
Com os esgares dos rostos.
Distantes, estranhos lugares
No profundo da mente
Por onde vagamos silentes.
No palco instável,
Estéreis, vagos atores
Vagamos inúteis
Em meio a sonho inúteis.
Eis-me entre as sombras,
Percebo-me, palpo-me.
Eis-me,
Enfim,
Em vão.
Vão-se os dias que me iludem.
Outros hão de vir a me iludir.
Iludo-me sempre, pareço rir,
Rio-me e as águas e mágoas
Sempre fluentes levam-me
A nenhum lugar.
Medem-se os passos,
Estudam-se os gestos,
Simula-se a emoção.
É só um ensaio, sempre um ensaio...
O riso estudado
É um risco constante.
Um súbito foco de luz indesejado
Revela a lucidez.
E o riso é cortante
E fere, quando a mim se refere,
Vago ator figurante.
Vagas referências nos sonhos circundantes.
Sonho, logo com prazer me firo.
Crer que somos como os sonhos
Que planam nos planos
Inescrutáveis da mente,
É inútil. A mente
Simplesmente
Mente.
Elsenor
Tudo, nada,
Ser e não ser...
Sempre o mesmo absurdo
Agora e sempre.
No esperado encontro não marcado
A hora não se encontra.
Antes do canto anunciante
O tempo é nenhum,
É sempre trevas.
Ver ou não ver
O espectro interior
Em múltiplos soturnos vultos
Dispersos
Pelo prisma inevitável da mente.
Uma sombra caminha
Junto às ameias. Quem?
Em forma humana se delineia
Quando os olhos se fecham.
E revelam o cenário.
Vagueia na cena desolada
E, desolada, acena. Para quem?
Quantas sombras somos, solitárias?
Ondas ansiosas sucidam-se
De encontro às muralhas inexistentes.
A verdespuma da ira se desfaz
Transformada em dor.
Loucas, loucas ondas
Loucas sombras, loucos eus.
Até quando, até onde?
Em que orlas, em que praias
Em que leitos
Em que braços e regaços
Não se escondem?
Não há mares, nem amores,
Nem regatos,
Nem um lago ensombrado.
Ninguém há para chamar
No escuro da mente,
Nas geladas águas silentes
Da dúvida.
Antes de ti, frágil Ofélia,
Em si afogara-se o príncipe.
A densa teia, a vida tensa
Dos tenuíssimos fios do sofrer é feita.
E os fios bordam
Múltiplas soturnas faces
Cambiantes
Que delineiam sempre
O mesmo inevitável semblante.
Tudo se perde nos descaminhos,
Todos nos perdemos.
Atraiçoa-nos a matéria,
Última manifestação do nada,
Sempre o nada.
E nada resta,
Nem o silêncio.
Lembra-te de mim, se não partires,
Ou de ninguém, se quiseres -
É o mesmo,
Ó tu que não sei,
Que nunca vi,
Para sempre,
Sempre,
Adeus.
De Ouro Preto 1
A igreja vazia.
Estiletes de sol ferindo a penumbra,
Oboés imaginários encantando o silêncio.
De uma nuvem, aos pés da virgem,
Olhou-me sorrindo o anjo estrábico.
Sorri-lhe e saí.
Ao longe, sobre os morros,
Tênues pinceladas vermelhas.
Pedras irregulares atapetam o caminho.
A velha mendiga estendeu-me as mãos.
Que mãos tão magras!
Súbito deu-me vontade
De ter morrido criança.
De Ouro Preto 2
Igreja do Pilar.
Atravesso o adro solitário
Afogado entre dois oceanos.
Ondas verdes dos morros distantes
Sob o azul perene, doído
De tão belo.
Uns meninos correm
Num pega-pega.
Volteiam-me sua algazarra,
Seus sorrisos. Dos meus me lembro.
Seus olhos mansos
Como os sons distantes desses sinos
Dos seus me lembro
Agora tão distantes.
Não os posso fitar
E como preciso vê-los,
Com preciso
Que me fitem os meus.
Ah! Nossa Senhora do Pilar,
Deixa eu ver de novo
Aqueles olhos dela,
Deixa que eles venham
De novo me acalentar.
De Ouro Preto 3
Sigo por estas ladeiras
Tortuosas, cansativas,
Estreitas
E tão belas.
E, súbito, a minha cruz
Se faz tão leve.
Deus, decerto,
Andou por aqui.
Casal Etrusco
(Os esposos de Cerveteri)
Repousados sobre o infinito mistério
Os corpos se estendem tranquilos
E, soerguidos os troncos,
Em terna cumplicidade sorriem.
Para nós sorriem, que os fitamos,
Como se nos fitassem seus olhos amendoados
De ancestral beleza,
Nos convidando ao encontro.
Convidam-nos os gestos fixados e etéreos
De suas mãos sensibilíssimas.
Longilíneos corpos, mãos longilíneas,
Harpejando em terracota
Os sons silenciosos da esperança.
Em nosso silêncio esperamos...
Com nossos olhos amedrontados
Por quem amamos e desconhecemos,
Esperamos pelo momento, além do tempo,
Em que, reclinados no cliné,
Repousaremos também nossos corpos fatigados,
Nossos corpos protegidos, protetores,
Envolvidos, envolventes,
Como um amor, somente.
Como se dois fossem um apenas
Reclinado no cliné,
Repousado sobre o infinito mistério,
Sorrindo para sempre
Por ser parte já do infinito mistério.
A queda
Vento
Espaço
Azul
Mormaço
Poste que vai
Poste que vem
Que vai
E que vem
Rodas de aço
Rodando
Retetém
Retetém
Retetém
Porta escancarada
Sol
Suor pela cara
Braço esticado
Braço dormente
Olhos dependurados
Sobre dormentes
Dormente que vai
Dormente que vem
Que vai
E que vem
Que vai
E que vem
Fio preto que sobe
Fio preto que desce
Que sobe
E que desce
Fio preto, filhinho,
Gurizinho
Que já é gente
E é ninguém
Quem o vê?
Quem o quer?
De onde vem?
De quem vem?
E se vem,
Onde o bem?
Retetém
Retetém
Retetém
Olha o céu!
Olha a pipa!
Olha a guimba!
Olha os peitos dela!
Olha a bola!
Olha a bola!
Alha aqui, ó!
Olha o pão!
Olha o poste!
Olha o poste que vem!
Que vem!
Que vem!
Poste
Preto
Tudo preto...
Braços dormentes
Dançando no ar...
Pernas pendentes
No traço
Do trilho de aço...
Cabeça fendida
Entre as fendas
Dos dormentes...
Céu azul
Mar vermelho
Mar morto
Mar de lama
Mar de gente
Olhando.
Olhos escancarados
Inocentes
Perplexos
Injustiçados
Olhos midriáticos
Que mal viram a vida
E não verão jamais
O Adriático.

Sonata nº 1
Os olhos acordam e, de leve, inseguros,
Buscam na treva circundante
Traços definidores, perfis inteligíveis,
Esboços de cores.
Olhos caçadores à espera da manhã.
No escuro vazio, denso é o medo – e oprime.
Os olhos cassados estão onde não sabem estar
E querem alívio no seio das formas.
As mãos, cães rastrejadores, farejam ansiosas
O leito, o lençol, a pele, a neblina do nada...
Súbito, um pálido risco desvenda
A fenda da cortina; há vida.
O corpo respira, o mundo é conexo, um pássaro acorda,
As mãos, inseguras, de leve tocam o sexo.
Sonata nº 2
O sol transforma a persiana
Numa pauta impressa no chão.
Sem clave, sem notas, sem barras...
O silêncio preenche o quarto
E descompassa o coração.
Sobre o mármore da mesinha
O relógio, irônico, finge marcar o tempo
Cujas marcas se exibem no pergaminho das mãos.
As sombras das mãos harpejam a pauta.
Em vão: cordas inatingíveis, grade inflexível,
Mãos livres e aprisionadas.
O sol se esvai, desfaz-se a impressão.
Persiste o silêncio, também o relógio
E o desconsolado coração.
Sonata nº 3
A luz do abajur não quebra a penumbra.
Delicadamente o incenso adocicado
Desprende-se do turíbulo.
A angústia e a fumaça azulada em silêncio
Dançam sinuosas e ascendentes.
Diante do pequeno Buda sobre a cômoda
A respiração é lenta, compassada,
Tentando, muda, imitar um mantra.
Pequeno Buda de prata enigmático a sorrir...
Por ironia talvez, talvez por compaixão,
Talvez por fitar o nada,
Por fitar de seu argênteo, abúlico nirvana,
O corpo vivo, preso às malhas do sansara,
Nu, em agonia, afundado na poltrona.
Sonata nº 4
Flores de prata entrançadas
Emolduram a foto sépia.
Sobre a ilha de crochê na mesa oval
O porta-retrato é um farol antigo:
A jovem tímida sorri com olhos que lampejam.
Densa é a noite no mar interior,
ansiosa a busca por olhos que nos vejam
E que, sorrindo, de nossa dor se compadeçam.
Os olhos nossos, barcos velados, erram pela sala,
Circundando enigmas, objetos silenciosos
Imersos na ilusão oceânica do tempo.
A jarra de cristal, estatuetas, quadros, a mesa oval...
Os olhos nossos aportam naqueles que já não são.
A quietude revela que a jovem não sorriu em vão.
Sonata nº 5
Sono. As palavras flutuam em desalinho sobre a página
As letras, pequenos insetos, roem o sentido do texto.
Os olhos invadem o ensaio do sonho. Um leve tremor.
A mão direita se abre, deixando pender o livro,
A outra, autônoma, busca o interruptor.
Súbito os olhos se veem de volta:
A cúpula do abajur, o leito, o corpo de lado,
O silêncio do quarto, a solidão, o temor.
A mão interrompe a busca.
A luz amarela e a percepção do ar inspirado
Asseguram a existência, o tempo-espaço do ser.
Não há alívio, porém, no gesto inacabado.
A mão hesitante perpetua a dúvida.
O que perguntar não se sabe, tampouco o que responder...
Modulações
?
Ar
Som?
Sílaba?
Expiração?
Inspiração?
M - fonema.
M ar
Ar-mar:
Prover de sons
E silêncios
Os sentidos internos
Tramar
As tramas bizarras da mente
Conexões coerentes
A morte. O temor.
O amor.
Há mar?
No ar
Ondulações do nada
Tudo preeenchem.
Sons externos
Tons, timbres,
Escalas, ascensões
Quedas
Gritos
Ritos
Rostos
O tremer. O terror.
Dramas da mente
Incoerente.
As faces tremendas
De ignotos deuses
Flutuando nas trevas
Das águas primeras,
Ar
Faces mudas
Inspiração, expiração,
Atmosfera
E além
Faces planas,
Superfícies imaginárias
Estendidas para sempre.
Ondulações eletromagnéticas
Amplo espectro
Imensurável fantasma divino
Enganador eterno, afogando
Sombras passantes
Sobre a face
Irregular do planeta
Delirantes sombras
Arfantes
Em fugas monótonas
Os mesmos temas
Reintroduzindo-se
De hiato em hiato
No espaço-tempo
Ar
Mar
Armar
As tramas
Das entranhas
Ser e temer e tremer
Ver o ser se perder
E não viver de amar
Para sempre
Nas trevas do nada?
Não!
Infinito é o mar
Que nos limites do ser repousa.
Marcas sulcadas nas faces,
Abrigos.
Lágrimas, não de dor,
Nos veios da pele,
Os rios da vida fecundos,
Sinuosos,
Em busca do mar
Ar
Ah
!