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Sombras e Sorrisos

 

 

Olhar sobre o Pacífico

 

Tarde outonal.

O círculo vermelho do sol

O escuro oceano sorve.

Horizonte – um risco

Ilusório e nítido,

Separando ar e água.

 

A noite virá,

Trará perfumes e fantasmas

E de novo o medo

Do risco que nos limita,

Verdadeiro e nítido,

Separando vida e morte.

Olhar sobre o Pacífico
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Quinteto de Brahms
Quinteto de Brahms

 

No quarto a um só tempo

O adágio e a noite

Desfazem o tempo.

Na penumbra flutua,

Coleante e lânguido,

O solo da clarineta.

Meus olhos se fecham

Como se para sempre.

Meu coração se estende

Sobre um campo florido,

À luz da lua,

E se deixa levar

Por esta dor suavíssima,

Que fere, alivia

E me adormece a alma,

Solitária e nua.

 
Recordação da clave de sol
 

A professora de piano chamava-se Maria.

Gorducha, um ar de bonomia.

Dedicou-me uma pecinha –

“O burrico”.

E lá se iam meus dedos miúdos

De sete anos – toc-toc,

Tropeçando no teclado.

...mas um dia

Tomariam as rédeas de esplêndidos ginetes...

Assim não foi, porém.

Mudamo-nos do Lins para Copacabana.

Aprendi a nadar,

A gostar das meninas de tranças,

A fitar o horizonte que, me disseram,

Não se alcança.

Hoje, às vezes, quando olho estas mãos

De tantos anos,

Vejo o burrico, toc-toc,

Trotando na distância

E a boa Maria, gorducha,

No horizonte, me acenando.

Recordação da clave de sol
Deuses
 

Eu e meus eus,

Afrodite e Ares,

Eros e Tânato,

Assombramos

Na cálida noite

A solidão

Do meu corpo desnudo,

Leito

De gozo e agonia

Dos meus corpos

Inúmeros.

Deuses
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Anchor 71
Jogo

 

Jogo

 

Apraz-me

Ater-me

A um jogo

Incerto.

Faço-me longe,

Quando me vejo perto.

Disfarço-me,

Desloco-me,

Despeço-me

E não desperto

Nos olhos

Que me pensaram ver

Senão um lampejo,

Por certo a dúvida

De um fugidio prazer.

Natureza

 

Sala,

No centro da mesa

O prato de maçãs.

Aveludado aroma rubro

Entre finas estrias amareladas –

Sóis num poente ibérico.

Silêncio.

O olhar impassível

Esconde no fundo

O desejo

Que da alma recende:

Rever-te, andaluza sem pecado,

Nua a ofertar-me

A origem do mundo.

 
 
Natureza
Rio de abril
 
 

Ruas sob o sol,

Claras e sujas.

Vida e morte.

Luto.

Sigo à toa,

Daqui para ali

Com minha pasta pesada.

Um louco, meu afim,

Coberto de trapos e jornais,

Olha os manequins numa vitrine

E ri.

Um cego, como eu,

Aguarda no sinal.

Ninguém o vê.

Um mendigo, a quem me assemelho,

Pede-me ajuda,

Com estudado sofrimento.

Tudo por acaso.

Transcendências inúteis,

Porém transferíveis.

Que eu me cubra de trapos,

Que eles levem minha pasta,

Sigamos vadios

No desatino do ir e vir.

O sol é ameno em abril

E tudo é igual

Na tristeza plena do existir.

Rio de abril
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Ruína
 

De repente

Só há penumbra, silêncio

E uma dor indizível.

O verso não se constrói,

Ou se quebra e jaz.

A alma é um deserto –

Pedra, pó

E um vento fino como navalha.

De repente

Nada há a dizer.

Viver é inútil espera

Que no tempo se desfaz.

E um medo frio como aço

Por toda a alma se espalha.

Ruína
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Caminhos
 

No princípio era o verbo,

O espírito flutuava em nenhum lugar.

E o verbo se fez verso

E a luz se fez.

Vieram o tempo, o espaço,

Os dias e as noites,

Os homens e seus corações desolados.

E versos também eles fizeram

E fazem,

Deixando-os pelos caminhos,

Por onde levam sua poucas alegrias

E suas dores, tantas.

Pelos caminhos

A buscar, em vão,

O verbo, o espírito,

A dissolução além da luz,

Onde repousa a eternidade

Em lugar nenhum.

Caminhos
Solo
 

Perdi-me,

Como todos.

Como todos, 

Estou só.

Erro ao longo de mim,

Silencioso solo –

Ária, canto, desencanto –

Que sou nada,

Senão pó.

 

Aterram-me

Os fios estranhos

Da existência,

Roubam-me a voz,

Transpassam-me

E, sem tecer o amor,

Atam-me ao mundo

Com cegos nós.

 

Resta-me

Afogar-me no indizível,

Sem escolha ou dó,

Que a vida logo passa –

Passacalha, chacona –

Visão que nos engana

A nós, cegos,

Se não inúteis,

Esperando ao sol.

Solo
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Frevo-galope
Frevo-galope
 

          (dança de Xiva)

 

O corpo é um

E são dois

E são mil

E rodopiam no ar.

São mil,

São dois,

É um só,

Antes, agora, depois.

Fitas multicores ao sol,

Pés fervilhando

Nas pedras da rua.

Os braços de Xiva

Tecem teias de sons,

Fanfarra, sarod, zabumba.

Os corpos são solos, são terra,

São rios de sangue,

De suor e de sêmen,

São vida, são morte,

Homemulheres – serpentes

Que os membros eréteis

Matam e fecundam.

E tudo se move,

Tudo é calor e tensão.

É clamor, alegria e horror.

Nas ruas os corpos se dão,

Os corpos se vão,

E são mil,

E são dois,

É um só

Perdido pra sempre

Na turba

E na solidão.

 
Novo século

 

Por falta de princípios

Nos dias de hoje

Os fins injustificáveis

São obtidos por todos os meios.

 

E a vida se esfacela

Com sofisticadíssima

Tecnologia.

Novo século
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Eu e o gato
Eu e o gato

 

Gorda criatura,

Às vezes magrinha,

Nem Quixote, nem Sancho.

Triste figura

Sempre perdida,

Em busca do sonho.

Gauche na escrita,

Na vida, talvez,

Carregando esta cruz,

Este vasto nariz.

Quem olha não diz,

E, no entanto, acredite,

Nunca teve bronquite

E, nem de longe, é um casto,

Só um míope aloucado,

Uma quase pessoa,

Ainda aprendiz.

Enfim,

Vai-se levando na flauta,

Que a vida é assim.

Meu canário fugiu,

Murchou meu jasmim.

Cadê o menino que estava aqui?

Ai de mim...

O gato comeu.

 
 
Ao desconhecido
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Ao desconhecido

 

Percorro o mundo.

O que busco não sei.

Não traço rumo,

Não tento aprumo,

Não espero,

Não desespero.

Levo comigo

Só meu coração.

Nele acolho os dias

E sigo.

Deixo o mundo percorrer-me,

Arranhar-me,

Fecundar-me.

E sigo

Ao longo de suas sombras

E sorrisos,

De suas mortes

E vidas,

Eternas e transitórias.

Nada tenho,

Nada quero.

Deixo-me amar,

Amando sem que saibam,

E sigo.

Desconheço-te,

Descreio de ti,

Recuso-te.

Contudo, sinto

Que vais comigo,

E contigo meu deserto

Faz-se rio, lago,

Mar aberto.

Contigo

Deixo-me morrer

E sigo

Em teu coração,

Único

E inexistente abrigo.

Imagem da galeria
Kaligynaika
 

Forma sinuosa

Tátil e volátil,

Fresca e tépida,

Erétil penugem dispersa –

A pele.

 

Perfumes vários –

Doce no colo,

Mais doce no peito,

Agridoce no sexo.

 

Firmes, pequenos,

Por sobre,

Róseos delicados ornatos –

Os seios.

 

Ondulado,

Circundando, simétrico,

A central cicatriz,

Flutuando levíssimo

Ao arfar sutil –

O ventre.

 

Longos, delgados,

Envolventes,

Carne e ternura,

Receptivos, protetores –

Os membros.

 

Calipígia.

Olhos de amêndoa,

 

 Heleno nariz

 

Lisos trigais ao vento, Cybele –

 

Os cabelos.

 

Finos, ou não,

Vermelhos, ou pálidos,

Úmidos, quase a sorrir,

Sempre dispostos, entreabertos -

Os lábios.

Além – alvos dentes.

 

Finos, ou não,

Vermelhos, ou pálidos,

Úmidos, cálidos,

Quase a sorrir, entreabertos,

Quase cobertos

Por um nada de pelos -

Os lábios.

Além – rubro segredo.

 

O resto é a noite,

A lua,

O mar

E o sonho

De possuir

Esse sonhar.

 

Kaligynaika
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Três esboços búdicos
Três esboços búdicos
 
1

Minha voz

Já ressoava

Nas florestas ancestrais.

Era a voz dos avós,

Dos avós, dos avós

Dos meus avós.

Quando eu para sempre

Dispersar-me no silêncio,

Nada serei,

Senão o encantamento

Que dá voz

Ao murmúrio das folhas,

Ao canto dos pássaros,

Ao zumbir dos insetos,

Ao sibilar do vento,

Ao ruído das ondas.

E nada sendo, farei parte

Dos risos, dos gritos,

Dos gemidos, das palavras,

Das vozes todas,

Que serão as vozes dos filhos,

Dos filhos, dos filhos

Dos meus filhos.

Até o início

Que se perde no sem fim.

 

   2

Agora, por fim,

A noite é plena

 

De estrelas, perfumes

E brisa amena.

 

Em meu olhar

Nada se apequena,

 

E nada sou ao vê-la

Assim, serena,

 

Por ser só o silêncio

Sem fim, apenas.

 

  3

Lentamente as montanhas

Vão ocultando o sol.

O céu se avermelha,

Obscurece e deixa

Nascer a quietude.

A vida principia,

Agora que finda

E se esvazia.

A compaixão ilumina a terra.

Os pássaros adormecem,

O vento leva o perfume das flores.

Os olhos do inominado

Criam, observam

E se enternecem.

Absinto
 

O translúcido oceano verde repousa

No espaço restrito do cálice.

Fito o mistério de sua superfície.

O aroma sutil acaricia-me –

Ar, pneuma, ápeiron.

Devo sorvê-lo muito lentamente

E deixar que a divindade

Oculta em suas águas

Sorva-me por inteiro.

Que em minha mente, então,

Meu corpo se desfaça,

Que eu paire inexistente

Em jardins de flores matizadas,

Que eu me estilhace

Em mínimos fragmentos

E adormeça sem sonhar

Na tepidez do ventre mais primevo.

Que, submerso,

De mim se apaguem prazer ou dor.

Que eu nada seja em tal momento

Senão a irrealidade, o cálice translúcido

E a vastidão irrestrita

Do oceano verde acolhedor.

Absinto
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Natureza morta
 

Mesa rústica.

No prato

Improváveis pomos rubros

Rutilantes-opacos.

Cidras silenciosas

Expostas.

Um peixe jaz,

Seu olho olha,

Infinito zero.

Luz de vela,

Fundo escuro.

Óleo sobre tela.

A alma,

Flor despetalada.

Que há ali?

Nada.

 

Natureza morta
Ágora
Ágora
 

Deuses marmóreos

Sob o sol

Oblíquo

Sombras do peristilo

Sobre lajes

Iridescentes

Falas fabricam essências

Para sempre

Recendentes.

Anaximandro
Filósofo grego
Falo
 

A resposta

Se expõe

Extensa

E túrgida

Ao mistério

Revisitado

Que se abre

Acolhedor.

Falo
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Sertão
 

Terra

Sulcos sedentos

Sol

Pedras luciferinas

O lagarto dorme

Deus também

A gente espera

Na curva seca

Do rio

Que boia

No raso

Dos nossos

Olhos.

Sertão

 

Dissolvências
 

Indefinida manhã

Chuva fina

Chão de pedras

Névoa por entre as folhas

Caminho...

Onde – aonde

Inspiração – expiração

Apreensão indefinida

Olhos errantes...

Palco vazio

Bailarinos nus

Saltam leves no silêncio...

Desejos ocultos

Nos sulcos

De um rosto antigo...

Dor

Surgida antes da vida

Sal do primeiro oceano

Indefinido pranto

Inspiração – expiração

Expiação

Suspiros...

Mãos vigorosas impelem

A gôndola negra

Ao longo do canal...

Máscaras

Enigmas

Antes e depois da morte

Inspiração – expiração...

Mãos aprisionadas em rosários

E em sexos túrgidos

Ah!

A vida

Sempre haverá depois

Ou não

Indefinido dia...

Neblina

Mar gelado

Areia

Chuva fina...

Mais uma noite há de vir

Indefinido perfume

Sândalo talvez...

Reclinada em rubras almofadas

Xerazade conta histórias...

Dissolvências
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Cantigas de Santa Maria
Cantigas de Santa Maria

 

De Santa Maria

São tão belas as canções

Que, de ouvi-las tanto,

Quem as ouve,

Se prende em devoções,

Mais que à Santa,

À língua antiga,

A flutuar

Em medievas melodias.

E até se crê,

Em tais momentos,

Que a vida não é perigo,

Mas claro, claro dia,

Como uma voz de anjo

Que aquieta a alma

E anuncia:

Ave, Maria!

Poema com rima e mofo
Poema com rima e mofo

 

Quando retorno ao oceano imaginário

Que sob meus olhos fechados se estendem,

Vejo-me à proa de um barco solitário.

 

E os astros silenciosos que no alto esplendem

Traçam nas águas um vasto estuário

Onde meus sonhos seguem e ao céu ascendem.

 

Nesse leito de desejos temerário

Os meus eus afloram e se distendem

Em busca do mistério originário.

 

Mas, quanto busquem, nada compreendem,

Que não podem os sonhos do visionário

Tecer verdades que de Deus não se desprendem.

Borboleta

 

 

Às vezes amanheço chovendo,

Um chuvinha fina, neblinosa,

Que deixa escorregadias

As pedras do meu chão.

Fico a olhar-me da cama,

Gotejando nos vidros da janela.

Da inércia faço asas

Bem pequenas,

E lá me vou, voejando,

Em plena chuva,

Despido e tiritante,

Por jardins imaginários,

Entre pássaros escondidos,

Flores despetaladas

E amores perecidos,

Mas ainda soluçantes.

E sigo... e me desfaço

No cheiro da terra úmida,

No frio grisalho do ar

E na espera de outra manhã

Que talvez surja em meu lugar.

E, quase sem perceber,

Preencho-me do ilimitado

E já não me sinto sendo.

Mas... breve momento...

Logo retorno,

As asas desaparecem,

Olho a janela, não chove.

Vejo o relógio na mesinha,

Inventando o tempo,

Inutilíssima picardia.

Então, despeço-me de mim

Com um sorriso leve,

Com um até breve,

Levanto-me

E vou andar à toa

Por mais um dia.

Borboleta
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Recusa

 

 Saleta antiga. 

Na parede com florões

O relógio oitavado.

Duas poltronas.

O piano escuro guarda, circunspecto,

Trinta e duas sonatas.

Tique-taque, aroma resinoso,

Tapete oriental.

Noite, silêncio, imobilidade

E um desespero brutal –

Jogam bombas em Bagdá.

Escondo-me de mim

Com profunda vergonha.

Bombas cruzam o céu de Bagdá,

Milenar, tão distante, tão aqui.

Matamo-nos sempre,

Eis nosso estigma.

A janela aberta oferta o céu

De estrelas árabes

E constelações gregas...

Saiph, Alnilam, Rigel,

Betelgeuse, a vermelha,

Órion...

Longe, longe de nós.

Matamo-nos sempre.

É pena.

Há trinta e duas sonatas

Guardadas no piano,

Mas não as queremos ouvir...

Um dia restará apenas

No silêncio da noite

A imobilidade das pedras e das cinzas,

E longe, bem longe,

        Estrelas que já não terão nomes.     

                                                                                    (março - 2003)

REcusa
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Desejo
 

 

Que houvesse um beijo

Em que a ponta da língua

Estendida e doce,

Tocando-me de leve a alma

Minha dor aquietasse...

 

Que houvesse um beijo

Em que o pousar dos lábios,

Misteriosos e suaves,

Para um espaço sem tempo

De repente me levasse...

 

Que houvesse um beijo

Cujo sabor indefinível

Fosse a trilha silvestre

Que eu seguisse

Ao coração de quem beijasse...

 

Que houvesse um beijo

Que se desse inesperado

E, na perfeição de seu momento

Num tempo sem espaço

Eternamente me deixasse...

 

Desejo
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Gimnopédia

 

Quem são vocês, esguios dançarinos,

Que, coleantes, em leves passos,

Despertam meu coração enquanto passam?

 

Quisera estar na primavera ao entardecer

Num amplo jardim heleno,

Aspirando a brisa perfumada,

 

E ao som de flautas e liras encantadas,

Coberto apenas por guirlandas,

Dançar também, mãos e almas dadas.

 

Quiser deixar-me enlanguescer

E perder-me em arrepios ao olhar

O arrepio das peles intocadas.

 

Quisera que os desejos todos se evolassem

Em aromas de incensos misteriosos

E sabores de línguas frutuosas.

 

Quisera que os corpos sinuosos

Só de música fossem feitos

E em acordes perfeitos se mesclassem.

 

Quisera a eternidade dessa dança,

Que eu fosse um desse jovens fixados

Nas cores desta antiquíssima cerâmica.

 

Gimnopédia
Além do olhar

Além do olhar

Para ver o que não se mostra
E saber o que não se diz,
Vai-se ao verso pelo avesso
E busca-se o que há no outro,
Depois do mistério do olhar.

O avesso do verso
É o poema desnudo,
O exposto desejo,
Pousado em silêncio
Entre o pranto e o riso.

Depois do olhar,
No outro há o mesmo que busca,
E chora, e ri, e acena,
Talvez convidando a dançar
Como se dança no paraíso.

 

Noturno

 

 

É tarde e amanhece.

Acorda o primeiro pássaro.

Em vão pela noite, insones,

Buscaram meus olhos

O alento de um perdido olhar.

Vieram os fantasmas

E, como sempre, se foram.

Mas aquele olhar, só aquele,

Não veio e não mais virá.

A vida segue e nada acontece.

É sempre tarde agora

Quando amanhece.

Noturno
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Encontro

 

 

Nenhuma palavra hoje

Trará à luz

A sombria dor do meu silêncio.

 

Nenhum verso hoje

Há de esculpir

A crua face da minha angústia.

 

Nenhum poema hoje

Dará vida

À inútil irrisão da minha vida.

 

Não, que hoje estarei só,

Despido diante de mim,

Só para olhar-me

 

E assombrar-me

Com as formas não esculpidas

Que me formam o ser,

 

Com a dor do meu silêncio,

Com a crua face da minha angústia,

Com a inútil irrisão da minha vida.

 

Quero-me, sim, despido,

Cravejado no lenho insuportável

Da verdade temida e desejada.

 

Quero encontrar-me com deus,

Imagem e semelhança do que sou,

Eterno criador do nada.

Encontro
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Três ironias pós-cirúrgicas
Três ironias pós-cirúrgicas

 

   1  

 

  No quarto

 

Agora já se passaram vinte e quatro horas.

Um sucesso, parece.

Incisão retilínea, sutura,

Novo traço no corpo.

Drenos, curativos, assepsia.

Os olhos atordoados vagueiam:

Dos lençóis à parede,

Da parede à janela,

Além, o céu,

Plúmbeo céu paulistano.

Som ambiental.

Quarteto,

Cordas, fios, notas, pontos,

Música fina, abdômen distendido,

Fluidos,

Tudo flui,

Grego obscuro, nada se decifra.

A música flui,

Definindo o tempo-espaço-angústia.

Opus 132.

E depois,

O que virá depois?

 

2

Aspereza, no modo lídio

 

Convalesço.

A vida, porém, é irrecuperável.

Sigo por aqui, por ali,

Sem adjetivos.

Sigo e permaneço.

Aguardo apenas

Que as luzes se apaguem,

Que os sons retornem ao silêncio,

Que os pulsos se aquietem.

Não quero ser grato,

Mas agradeço:

Por sorte, o fim é o fim,

Não o recomeço.

 

 

Delicadeza, no modo lídio

 

Convalesço.

Recupero a vida, que me olha.

Sigo por aqui, por ali,

Com um leve sorriso.

Sigo e permaneço.

Aguardo apenas

Que as cores matizem a luz,

Que o silêncio se adorne de sons,

Que os pulsos de Eros floresçam.

Não preciso ser grato,

Mas agradeço:

Por sorte o fim

Se desfaz no recomeço.

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Platônica

                                       

Uma flor.

Não há aqui uma flor.

A palavra há: flor.

A flor que penso

Não tenho como mostrar.

Não importa,

Dou-te a palavra,

Faz dela a tua flor.

E duas flores serão,

Livres na inexistência,

E serão as duas uma flor

No jardim inencontrável

Das essências.

Platônica
Dado
Dado

 

 

.

Ponto.

Antes do dizer

E do nada,

O indizível.

Vazio antes do vazio.

Nem vida, nem morte.

Ponto.

Singular eternidade.

. .

Dois pontos:

Expliquem-se

Um e outro,

Iguais e não.

Ambiguidade,

Gravitação:

Corpos

Celestes,

Binários sóis conexos.

Expiação:

Corpos

Terrestres,

Juntos e sós,

Circundando

Os mistérios dos sexos.

 . . .

Reticências.

O que se sabe

E se teme:

O fim que não se sabe,

A incerteza dos olhares,

A interrogação

No ventre da palavra...

Vida por morte,

Dízima periódica.

.  .

.  .

Equidade,

Justiça pitagórica,

Mas no vazio do quadro

Espreita invisível

A dúvida.

Números, veleidades,

Piruetas na mente,

Iluminação...

Nada disso,

Apenas,

Quatro furos

De um botão.

.       .
.
.        .

 

Ideograma inexistente:

Brevidade.

Borboleta de asas abertas.

A vida é breve como ela.

Cinco pontos – uma cruz.

A vida pesa  como ela.

Sêmen, sangue,

E corpos sobre a terra,

Caídos, expostos, nus.

.   .
.   .
.   .

 

Ápice.

A face desejada

Do poder.

O gozo de expor

Não o gozo,

Mas a rigidez do falo.

Força ilusória, porém...

Pontos lado a lado.

Marcas da trilha inexorável

Por onde se leva a paixão.

Do nada ao nada.,

Ao ponto

Antes do nada,

Ao silêncio eterno

Antes do dizer.

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Dado
Dilema

 

Dilema

 

Quando sou visto

Sou o que veem,

Não o que sou.

Quando não sou visto

Sou o que sou,

Mas só em mim existo.

Três poemas estáticos

 

1

 

Retângulo de negro granito.

Lápide.

Retrato sépia oval.

Rosto, enigma,

Hiato: 1911 – 1980.

Silêncio, apneia,

Tarde, mormaço.

Cruz erguida,

Vazia.

Nada além.

Um vaso com rubros gerânios,

A dor ainda viva de alguém.

 

2

 

Rua, larga calçada, noite.

Vitrines acesas.

Entre cores e desejos,

Sorridentes manequins.

Chão –

Um homem seminu estirado.

Mundo apagado,

Carne exposta,

Existência inexistente.

Carnes expostas:

Homens e mulheres animados

Nas mesas do bar em frente.

 

3

 

Consultório,

Sala de espera,

Poltronas escuras,

Silêncio, angústia.

Olhos fixados na tela –

Mar cinza, ondas imóveis,

Lua empastada,

Moldura amarela,

Branca parede.

A vida vale, não vale,

Vale, não vale.

Esperança a desfazer-se,

Metástases de pétalas murchas.

Lembranças inúteis

De eternidade e desejos,

De línguas fecundando beijos.

 

 

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Três poemas estáticos
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A teia
A teia

 

Estou só.

Noite.

Luzes apagadas,

Olhos fechados,

Limito-me a respirar,

Imóvel na poltrona.

Não estou trancado no quarto.

Apenas estou só, de olhos fechados.

Noite calma,

Dor intensa,

Tão intensa

Que é quase paz.

Nem livre, nem preso,

Nos pensamentos que se esgarçam

E me enredam.

Não, que se diga a verdade,

Preso, sim,

Na teia.

Presa imobilizada

Pelos venenos da vida.

Amores...

Inútil chorar por eles.

Não há.

Inútil, portanto,

A lágrima sub-reptícia

Que me toca os lábios.

Sal.

O mar, olhando eu ficava,

De olhos parados,

Na praia deserta.

Entardecer sombrio,

Ondas escuras,

Vida apagada.

Os frios mistérios no fundo.

Estes, cá dentro, que são meus,

Que são eu, todos eu.

Um ou mil estilhaços

Rompendo-me de dentro,

Cravos e espinhos brotando

De meu corpo, este, aqui,

Miserável e nu.

Perdido

Nos olhos fechados da noite.

Eu que estou só,

Como sempre estive,

Anjo perverso,

Íncubo, súcubo, pobre delirante

E lúcido, porém nas trevas.

Onde me escondo,

Onde estou dentro de mim?

Onde se escondem os amores dos outros?

Não há.

Um inseto zumbe em meus ouvidos.

Vem e vai, vem e vai.

Ondas,

Círculos disformes no ar,

Ondas escuras,

Imprevisíveis trajetórias

De gaivotas voando,

De repente mergulhando,

E depois se alçando para o ilimitado.

Não eu, decaído,

Mergulhado na asfixia,

Embora respire.

Não vejo os limites deste quarto,

As paredes, os diedros,

Não, estou preso à finitude da vida.

Não há aqui uma flor que me deixasse o perfume.

Uma flor lilás.

Lilás era o manto que cobria o cristo morto.

E nós, crianças, devíamos erguer um pouco

Aquele manto e beijar os frios pés de gesso,

Sob o bruxuleio lacrimejante dos círios

E olhares das beatas de véus negros.

Morreste em vão,

Deixaste-nos o silício

E a ilusão de que poderíamos também amar.

Não podemos.

Nossa realidade não tem essência,

Nosso estofo é o medo.

Estou só na noite fria.

Meus olhos estão fechados,

Meu coração pulsa

Em vão, como morreste.

E a morte não tem olhos,

Não tem corpo, não jaz.

Nada sendo, é tudo.

Como está frio!

Deem-me uma bebida forte!

Aplaquem a minha dor!

Encharquem-me os lábios com vinagre!

De que vale isso..

A imobilidade nesta poltrona,

Nesta cruz,

A percorrer esses labirintos absurdos,

Construídos sem quaisquer saídas.

 

 

 

Reflexão

 

O que sou sem o outro?

Nada.

Sem o outro

Não posso amar,

Sem o outro

Nada tenho a dizer,

Sem o outro

Não há porque sorrir,

Sem o outro

Não há o que sonhar,

Sem o outro

Não me construo,

Sem o outro

Não me conheço.

 

Se tenho sede

O outro é água,

Se tenho fome

O outro é pão,

Se tenho frio

O outro é chama,

Se tenho medo

 O outro é mãe.

 

Que à imagem e semelhança

Do outro

Sempre eu me veja,

Que isto é o bastante no viver.

 

E que me veja sempre o outro

Como água, e pão,

E chama, e mãe,

Sem que nada precise me dizer.

 

Reflexão

??

 

 

O que é isto que sou?

Isto, este que escreve, o que é?

?

O que constrói este sinal?

Ou desconstrói?

De que fala este sinal?

O que pergunta este sinal?

Por que só ele me possui?

E me trespassa,

E estilhaça-me

Em fragmentos inúteis de nada?

O nada existente.

Mas é isto o que sou?

Quando se morre,

O que se desfaz?

Mas, se nada sou,

Não morro, ou morro?

Arritimia

 

Arritmia

 

 

O espelho,

O rosto,

Eu.

Barba,

Torneira,

Água

Escorrendo na pia.

Manhã.

Um dia a mais,

Um dia a menos,

Sístole,

Diástole.

O que resta do rosto:

Rugas bordando bocejos,

Ineludíveis pálpebras

Empapuçadas.

Nem espanto, nem desejos.

Pia cheia de água,

Ego te baptizo:

Batráquio.

Ritos, rictus.

In nomine Patris et Fillii,

Facies, ritmos,

O res ridicula,

 Orff-Catullo,

Ri-di-i-cu-u-la

Ri-diii-cula.

Escleróticas sanguirraiadas,

Vinho,

Insônia e fracasso

Eu só –

Uno – trino,

Sataníssima trindade,

Carne exposta no silêncio,

Esse que jaz atrás do rosto,

E fala, filho,

E ouve, pai,

E espreita

No fundo do nada, medo.

Coração aos tropeços.

Extrassistolia.

Água escorrendo na pia.

O espelho,

Os olhos,

Enganadora superfície polida.

Meus, não os conheço.

Vidro, estanho, prata,

Nada há ali, aqui.

Planos, convexos,

Côncavos imensos,

Para observar o universo.

Matéria estruturada...

Elementos,

Argentum, plumbum,

Aurum,

Hydrargiros.

Mercúrio,

Mensageiro alado,

Planeta, um corpo errante

Este meu, absurdo,

Este absurdo.

Deuses, deusas,

Ambrosia, sexos,

Deles bastam os sexos,

Bastam-me os meus,

Que não me bastam.

Surgida da espuma das águas.

Tépida a água agora.

Branca espuma no rosto.

Operação singular:

Minúsculo objeto,

Haste azul,

Delicadas lâminas paralelas,

Deslizando suaves sobre a pele.

Uma navalha fosse...

Sob a mandíbula

Um fino profundo sulco

Vermelho.

Um traço sempiterno,

Assistolia,

Éden.

Olhos perdidos

A leste do éden.

O espelho,

Boca entreaberta,

Língua ávida

De línguas.

Tu me amas?

Salivas.

Algaravias,

Línguas deslizando suaves

Nas falas,

Nas peles,

Nos sulcos, nas falhas, nos falos,

Tateando em busca,

Em vão.

Torneira,

Água escorrendo na pia.

Sede,

Prazer,

Agonia.

Gozo -

Sagrada aporia:

Quanto mais pleno,

Mais plenamente vazio.

Coriolis,

A física pelo ralo,

Levando espuma

E partículas grisalhas.

Senilidade.

Depois o fundo

Que aterra.

Os olhos,

Dois buracos.

O espelho,

Um rosto

Sem desejo.

Só espanto.

Manhã.

Um dia,

Eu,

Nada.

Água

Escorrendo
Na pia.

 

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                        © 2016 O poeta.                            

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