Sombras e Sorrisos
Olhar sobre o Pacífico
Tarde outonal.
O círculo vermelho do sol
O escuro oceano sorve.
Horizonte – um risco
Ilusório e nítido,
Separando ar e água.
A noite virá,
Trará perfumes e fantasmas
E de novo o medo
Do risco que nos limita,
Verdadeiro e nítido,
Separando vida e morte.
Quinteto de Brahms
No quarto a um só tempo
O adágio e a noite
Desfazem o tempo.
Na penumbra flutua,
Coleante e lânguido,
O solo da clarineta.
Meus olhos se fecham
Como se para sempre.
Meu coração se estende
Sobre um campo florido,
À luz da lua,
E se deixa levar
Por esta dor suavíssima,
Que fere, alivia
E me adormece a alma,
Solitária e nua.
Recordação da clave de sol
A professora de piano chamava-se Maria.
Gorducha, um ar de bonomia.
Dedicou-me uma pecinha –
“O burrico”.
E lá se iam meus dedos miúdos
De sete anos – toc-toc,
Tropeçando no teclado.
...mas um dia
Tomariam as rédeas de esplêndidos ginetes...
Assim não foi, porém.
Mudamo-nos do Lins para Copacabana.
Aprendi a nadar,
A gostar das meninas de tranças,
A fitar o horizonte que, me disseram,
Não se alcança.
Hoje, às vezes, quando olho estas mãos
De tantos anos,
Vejo o burrico, toc-toc,
Trotando na distância
E a boa Maria, gorducha,
No horizonte, me acenando.
Deuses
Eu e meus eus,
Afrodite e Ares,
Eros e Tânato,
Assombramos
Na cálida noite
A solidão
Do meu corpo desnudo,
Leito
De gozo e agonia
Dos meus corpos
Inúmeros.
Jogo
Apraz-me
Ater-me
A um jogo
Incerto.
Faço-me longe,
Quando me vejo perto.
Disfarço-me,
Desloco-me,
Despeço-me
E não desperto
Nos olhos
Que me pensaram ver
Senão um lampejo,
Por certo a dúvida
De um fugidio prazer.
Natureza
Sala,
No centro da mesa
O prato de maçãs.
Aveludado aroma rubro
Entre finas estrias amareladas –
Sóis num poente ibérico.
Silêncio.
O olhar impassível
Esconde no fundo
O desejo
Que da alma recende:
Rever-te, andaluza sem pecado,
Nua a ofertar-me
A origem do mundo.
Rio de abril
Ruas sob o sol,
Claras e sujas.
Vida e morte.
Luto.
Sigo à toa,
Daqui para ali
Com minha pasta pesada.
Um louco, meu afim,
Coberto de trapos e jornais,
Olha os manequins numa vitrine
E ri.
Um cego, como eu,
Aguarda no sinal.
Ninguém o vê.
Um mendigo, a quem me assemelho,
Pede-me ajuda,
Com estudado sofrimento.
Tudo por acaso.
Transcendências inúteis,
Porém transferíveis.
Que eu me cubra de trapos,
Que eles levem minha pasta,
Sigamos vadios
No desatino do ir e vir.
O sol é ameno em abril
E tudo é igual
Na tristeza plena do existir.
Ruína
De repente
Só há penumbra, silêncio
E uma dor indizível.
O verso não se constrói,
Ou se quebra e jaz.
A alma é um deserto –
Pedra, pó
E um vento fino como navalha.
De repente
Nada há a dizer.
Viver é inútil espera
Que no tempo se desfaz.
E um medo frio como aço
Por toda a alma se espalha.
Caminhos
No princípio era o verbo,
O espírito flutuava em nenhum lugar.
E o verbo se fez verso
E a luz se fez.
Vieram o tempo, o espaço,
Os dias e as noites,
Os homens e seus corações desolados.
E versos também eles fizeram
E fazem,
Deixando-os pelos caminhos,
Por onde levam sua poucas alegrias
E suas dores, tantas.
Pelos caminhos
A buscar, em vão,
O verbo, o espírito,
A dissolução além da luz,
Onde repousa a eternidade
Em lugar nenhum.
Solo
Perdi-me,
Como todos.
Como todos,
Estou só.
Erro ao longo de mim,
Silencioso solo –
Ária, canto, desencanto –
Que sou nada,
Senão pó.
Aterram-me
Os fios estranhos
Da existência,
Roubam-me a voz,
Transpassam-me
E, sem tecer o amor,
Atam-me ao mundo
Com cegos nós.
Resta-me
Afogar-me no indizível,
Sem escolha ou dó,
Que a vida logo passa –
Passacalha, chacona –
Visão que nos engana
A nós, cegos,
Se não inúteis,
Esperando ao sol.
Frevo-galope
(dança de Xiva)
O corpo é um
E são dois
E são mil
E rodopiam no ar.
São mil,
São dois,
É um só,
Antes, agora, depois.
Fitas multicores ao sol,
Pés fervilhando
Nas pedras da rua.
Os braços de Xiva
Tecem teias de sons,
Fanfarra, sarod, zabumba.
Os corpos são solos, são terra,
São rios de sangue,
De suor e de sêmen,
São vida, são morte,
Homemulheres – serpentes
Que os membros eréteis
Matam e fecundam.
E tudo se move,
Tudo é calor e tensão.
É clamor, alegria e horror.
Nas ruas os corpos se dão,
Os corpos se vão,
E são mil,
E são dois,
É um só
Perdido pra sempre
Na turba
E na solidão.
Novo século
Por falta de princípios
Nos dias de hoje
Os fins injustificáveis
São obtidos por todos os meios.
E a vida se esfacela
Com sofisticadíssima
Tecnologia.
Eu e o gato
Gorda criatura,
Às vezes magrinha,
Nem Quixote, nem Sancho.
Triste figura
Sempre perdida,
Em busca do sonho.
Gauche na escrita,
Na vida, talvez,
Carregando esta cruz,
Este vasto nariz.
Quem olha não diz,
E, no entanto, acredite,
Nunca teve bronquite
E, nem de longe, é um casto,
Só um míope aloucado,
Uma quase pessoa,
Ainda aprendiz.
Enfim,
Vai-se levando na flauta,
Que a vida é assim.
Meu canário fugiu,
Murchou meu jasmim.
Cadê o menino que estava aqui?
Ai de mim...
O gato comeu.
Ao desconhecido
Percorro o mundo.
O que busco não sei.
Não traço rumo,
Não tento aprumo,
Não espero,
Não desespero.
Levo comigo
Só meu coração.
Nele acolho os dias
E sigo.
Deixo o mundo percorrer-me,
Arranhar-me,
Fecundar-me.
E sigo
Ao longo de suas sombras
E sorrisos,
De suas mortes
E vidas,
Eternas e transitórias.
Nada tenho,
Nada quero.
Deixo-me amar,
Amando sem que saibam,
E sigo.
Desconheço-te,
Descreio de ti,
Recuso-te.
Contudo, sinto
Que vais comigo,
E contigo meu deserto
Faz-se rio, lago,
Mar aberto.
Contigo
Deixo-me morrer
E sigo
Em teu coração,
Único
E inexistente abrigo.
Kaligynaika
Forma sinuosa
Tátil e volátil,
Fresca e tépida,
Erétil penugem dispersa –
A pele.
Perfumes vários –
Doce no colo,
Mais doce no peito,
Agridoce no sexo.
Firmes, pequenos,
Por sobre,
Róseos delicados ornatos –
Os seios.
Ondulado,
Circundando, simétrico,
A central cicatriz,
Flutuando levíssimo
Ao arfar sutil –
O ventre.
Longos, delgados,
Envolventes,
Carne e ternura,
Receptivos, protetores –
Os membros.
Calipígia.
Olhos de amêndoa,
Heleno nariz
Lisos trigais ao vento, Cybele –
Os cabelos.
Finos, ou não,
Vermelhos, ou pálidos,
Úmidos, quase a sorrir,
Sempre dispostos, entreabertos -
Os lábios.
Além – alvos dentes.
Finos, ou não,
Vermelhos, ou pálidos,
Úmidos, cálidos,
Quase a sorrir, entreabertos,
Quase cobertos
Por um nada de pelos -
Os lábios.
Além – rubro segredo.
O resto é a noite,
A lua,
O mar
E o sonho
De possuir
Esse sonhar.
Três esboços búdicos
1
Minha voz
Já ressoava
Nas florestas ancestrais.
Era a voz dos avós,
Dos avós, dos avós
Dos meus avós.
Quando eu para sempre
Dispersar-me no silêncio,
Nada serei,
Senão o encantamento
Que dá voz
Ao murmúrio das folhas,
Ao canto dos pássaros,
Ao zumbir dos insetos,
Ao sibilar do vento,
Ao ruído das ondas.
E nada sendo, farei parte
Dos risos, dos gritos,
Dos gemidos, das palavras,
Das vozes todas,
Que serão as vozes dos filhos,
Dos filhos, dos filhos
Dos meus filhos.
Até o início
Que se perde no sem fim.
2
Agora, por fim,
A noite é plena
De estrelas, perfumes
E brisa amena.
Em meu olhar
Nada se apequena,
E nada sou ao vê-la
Assim, serena,
Por ser só o silêncio
Sem fim, apenas.
3
Lentamente as montanhas
Vão ocultando o sol.
O céu se avermelha,
Obscurece e deixa
Nascer a quietude.
A vida principia,
Agora que finda
E se esvazia.
A compaixão ilumina a terra.
Os pássaros adormecem,
O vento leva o perfume das flores.
Os olhos do inominado
Criam, observam
E se enternecem.
Absinto
O translúcido oceano verde repousa
No espaço restrito do cálice.
Fito o mistério de sua superfície.
O aroma sutil acaricia-me –
Ar, pneuma, ápeiron.
Devo sorvê-lo muito lentamente
E deixar que a divindade
Oculta em suas águas
Sorva-me por inteiro.
Que em minha mente, então,
Meu corpo se desfaça,
Que eu paire inexistente
Em jardins de flores matizadas,
Que eu me estilhace
Em mínimos fragmentos
E adormeça sem sonhar
Na tepidez do ventre mais primevo.
Que, submerso,
De mim se apaguem prazer ou dor.
Que eu nada seja em tal momento
Senão a irrealidade, o cálice translúcido
E a vastidão irrestrita
Do oceano verde acolhedor.
Natureza morta
Mesa rústica.
No prato
Improváveis pomos rubros
Rutilantes-opacos.
Cidras silenciosas
Expostas.
Um peixe jaz,
Seu olho olha,
Infinito zero.
Luz de vela,
Fundo escuro.
Óleo sobre tela.
A alma,
Flor despetalada.
Que há ali?
Nada.
Ágora
Deuses marmóreos
Sob o sol
Oblíquo
Sombras do peristilo
Sobre lajes
Iridescentes
Falas fabricam essências
Para sempre
Recendentes.
Falo
A resposta
Se expõe
Extensa
E túrgida
Ao mistério
Revisitado
Que se abre
Acolhedor.
Sertão
Terra
Sulcos sedentos
Sol
Pedras luciferinas
O lagarto dorme
Deus também
A gente espera
Na curva seca
Do rio
Que boia
No raso
Dos nossos
Olhos.
Dissolvências
Indefinida manhã
Chuva fina
Chão de pedras
Névoa por entre as folhas
Caminho...
Onde – aonde
Inspiração – expiração
Apreensão indefinida
Olhos errantes...
Palco vazio
Bailarinos nus
Saltam leves no silêncio...
Desejos ocultos
Nos sulcos
De um rosto antigo...
Dor
Surgida antes da vida
Sal do primeiro oceano
Indefinido pranto
Inspiração – expiração
Expiação
Suspiros...
Mãos vigorosas impelem
A gôndola negra
Ao longo do canal...
Máscaras
Enigmas
Antes e depois da morte
Inspiração – expiração...
Mãos aprisionadas em rosários
E em sexos túrgidos
Ah!
A vida
Sempre haverá depois
Ou não
Indefinido dia...
Neblina
Mar gelado
Areia
Chuva fina...
Mais uma noite há de vir
Indefinido perfume
Sândalo talvez...
Reclinada em rubras almofadas
Xerazade conta histórias...
Cantigas de Santa Maria
De Santa Maria
São tão belas as canções
Que, de ouvi-las tanto,
Quem as ouve,
Se prende em devoções,
Mais que à Santa,
À língua antiga,
A flutuar
Em medievas melodias.
E até se crê,
Em tais momentos,
Que a vida não é perigo,
Mas claro, claro dia,
Como uma voz de anjo
Que aquieta a alma
E anuncia:
Ave, Maria!
Poema com rima e mofo
Quando retorno ao oceano imaginário
Que sob meus olhos fechados se estendem,
Vejo-me à proa de um barco solitário.
E os astros silenciosos que no alto esplendem
Traçam nas águas um vasto estuário
Onde meus sonhos seguem e ao céu ascendem.
Nesse leito de desejos temerário
Os meus eus afloram e se distendem
Em busca do mistério originário.
Mas, quanto busquem, nada compreendem,
Que não podem os sonhos do visionário
Tecer verdades que de Deus não se desprendem.
Borboleta
Às vezes amanheço chovendo,
Um chuvinha fina, neblinosa,
Que deixa escorregadias
As pedras do meu chão.
Fico a olhar-me da cama,
Gotejando nos vidros da janela.
Da inércia faço asas
Bem pequenas,
E lá me vou, voejando,
Em plena chuva,
Despido e tiritante,
Por jardins imaginários,
Entre pássaros escondidos,
Flores despetaladas
E amores perecidos,
Mas ainda soluçantes.
E sigo... e me desfaço
No cheiro da terra úmida,
No frio grisalho do ar
E na espera de outra manhã
Que talvez surja em meu lugar.
E, quase sem perceber,
Preencho-me do ilimitado
E já não me sinto sendo.
Mas... breve momento...
Logo retorno,
As asas desaparecem,
Olho a janela, não chove.
Vejo o relógio na mesinha,
Inventando o tempo,
Inutilíssima picardia.
Então, despeço-me de mim
Com um sorriso leve,
Com um até breve,
Levanto-me
E vou andar à toa
Por mais um dia.
Recusa
Saleta antiga.
Na parede com florões
O relógio oitavado.
Duas poltronas.
O piano escuro guarda, circunspecto,
Trinta e duas sonatas.
Tique-taque, aroma resinoso,
Tapete oriental.
Noite, silêncio, imobilidade
E um desespero brutal –
Jogam bombas em Bagdá.
Escondo-me de mim
Com profunda vergonha.
Bombas cruzam o céu de Bagdá,
Milenar, tão distante, tão aqui.
Matamo-nos sempre,
Eis nosso estigma.
A janela aberta oferta o céu
De estrelas árabes
E constelações gregas...
Saiph, Alnilam, Rigel,
Betelgeuse, a vermelha,
Órion...
Longe, longe de nós.
Matamo-nos sempre.
É pena.
Há trinta e duas sonatas
Guardadas no piano,
Mas não as queremos ouvir...
Um dia restará apenas
No silêncio da noite
A imobilidade das pedras e das cinzas,
E longe, bem longe,
Estrelas que já não terão nomes.
(março - 2003)
Desejo
Que houvesse um beijo
Em que a ponta da língua
Estendida e doce,
Tocando-me de leve a alma
Minha dor aquietasse...
Que houvesse um beijo
Em que o pousar dos lábios,
Misteriosos e suaves,
Para um espaço sem tempo
De repente me levasse...
Que houvesse um beijo
Cujo sabor indefinível
Fosse a trilha silvestre
Que eu seguisse
Ao coração de quem beijasse...
Que houvesse um beijo
Que se desse inesperado
E, na perfeição de seu momento
Num tempo sem espaço
Eternamente me deixasse...
Gimnopédia
Quem são vocês, esguios dançarinos,
Que, coleantes, em leves passos,
Despertam meu coração enquanto passam?
Quisera estar na primavera ao entardecer
Num amplo jardim heleno,
Aspirando a brisa perfumada,
E ao som de flautas e liras encantadas,
Coberto apenas por guirlandas,
Dançar também, mãos e almas dadas.
Quiser deixar-me enlanguescer
E perder-me em arrepios ao olhar
O arrepio das peles intocadas.
Quisera que os desejos todos se evolassem
Em aromas de incensos misteriosos
E sabores de línguas frutuosas.
Quisera que os corpos sinuosos
Só de música fossem feitos
E em acordes perfeitos se mesclassem.
Quisera a eternidade dessa dança,
Que eu fosse um desse jovens fixados
Nas cores desta antiquíssima cerâmica.
Além do olhar
Para ver o que não se mostra
E saber o que não se diz,
Vai-se ao verso pelo avesso
E busca-se o que há no outro,
Depois do mistério do olhar.
O avesso do verso
É o poema desnudo,
O exposto desejo,
Pousado em silêncio
Entre o pranto e o riso.
Depois do olhar,
No outro há o mesmo que busca,
E chora, e ri, e acena,
Talvez convidando a dançar
Como se dança no paraíso.
Noturno
É tarde e amanhece.
Acorda o primeiro pássaro.
Em vão pela noite, insones,
Buscaram meus olhos
O alento de um perdido olhar.
Vieram os fantasmas
E, como sempre, se foram.
Mas aquele olhar, só aquele,
Não veio e não mais virá.
A vida segue e nada acontece.
É sempre tarde agora
Quando amanhece.
Encontro
Nenhuma palavra hoje
Trará à luz
A sombria dor do meu silêncio.
Nenhum verso hoje
Há de esculpir
A crua face da minha angústia.
Nenhum poema hoje
Dará vida
À inútil irrisão da minha vida.
Não, que hoje estarei só,
Despido diante de mim,
Só para olhar-me
E assombrar-me
Com as formas não esculpidas
Que me formam o ser,
Com a dor do meu silêncio,
Com a crua face da minha angústia,
Com a inútil irrisão da minha vida.
Quero-me, sim, despido,
Cravejado no lenho insuportável
Da verdade temida e desejada.
Quero encontrar-me com deus,
Imagem e semelhança do que sou,
Eterno criador do nada.
Três ironias pós-cirúrgicas
1
No quarto
Agora já se passaram vinte e quatro horas.
Um sucesso, parece.
Incisão retilínea, sutura,
Novo traço no corpo.
Drenos, curativos, assepsia.
Os olhos atordoados vagueiam:
Dos lençóis à parede,
Da parede à janela,
Além, o céu,
Plúmbeo céu paulistano.
Som ambiental.
Quarteto,
Cordas, fios, notas, pontos,
Música fina, abdômen distendido,
Fluidos,
Tudo flui,
Grego obscuro, nada se decifra.
A música flui,
Definindo o tempo-espaço-angústia.
Opus 132.
E depois,
O que virá depois?
2
Aspereza, no modo lídio
Convalesço.
A vida, porém, é irrecuperável.
Sigo por aqui, por ali,
Sem adjetivos.
Sigo e permaneço.
Aguardo apenas
Que as luzes se apaguem,
Que os sons retornem ao silêncio,
Que os pulsos se aquietem.
Não quero ser grato,
Mas agradeço:
Por sorte, o fim é o fim,
Não o recomeço.
3
Delicadeza, no modo lídio
Convalesço.
Recupero a vida, que me olha.
Sigo por aqui, por ali,
Com um leve sorriso.
Sigo e permaneço.
Aguardo apenas
Que as cores matizem a luz,
Que o silêncio se adorne de sons,
Que os pulsos de Eros floresçam.
Não preciso ser grato,
Mas agradeço:
Por sorte o fim
Se desfaz no recomeço.
Platônica
Uma flor.
Não há aqui uma flor.
A palavra há: flor.
A flor que penso
Não tenho como mostrar.
Não importa,
Dou-te a palavra,
Faz dela a tua flor.
E duas flores serão,
Livres na inexistência,
E serão as duas uma flor
No jardim inencontrável
Das essências.
Dado
.
Ponto.
Antes do dizer
E do nada,
O indizível.
Vazio antes do vazio.
Nem vida, nem morte.
Ponto.
Singular eternidade.
. .
Dois pontos:
Expliquem-se
Um e outro,
Iguais e não.
Ambiguidade,
Gravitação:
Corpos
Celestes,
Binários sóis conexos.
Expiação:
Corpos
Terrestres,
Juntos e sós,
Circundando
Os mistérios dos sexos.
. . .
Reticências.
O que se sabe
E se teme:
O fim que não se sabe,
A incerteza dos olhares,
A interrogação
No ventre da palavra...
Vida por morte,
Dízima periódica.
. .
. .
Equidade,
Justiça pitagórica,
Mas no vazio do quadro
Espreita invisível
A dúvida.
Números, veleidades,
Piruetas na mente,
Iluminação...
Nada disso,
Apenas,
Quatro furos
De um botão.
. .
.
. .
Ideograma inexistente:
Brevidade.
Borboleta de asas abertas.
A vida é breve como ela.
Cinco pontos – uma cruz.
A vida pesa como ela.
Sêmen, sangue,
E corpos sobre a terra,
Caídos, expostos, nus.
. .
. .
. .
Ápice.
A face desejada
Do poder.
O gozo de expor
Não o gozo,
Mas a rigidez do falo.
Força ilusória, porém...
Pontos lado a lado.
Marcas da trilha inexorável
Por onde se leva a paixão.
Do nada ao nada.,
Ao ponto
Antes do nada,
Ao silêncio eterno
Antes do dizer.
Dilema
Quando sou visto
Sou o que veem,
Não o que sou.
Quando não sou visto
Sou o que sou,
Mas só em mim existo.
Três poemas estáticos
1
Retângulo de negro granito.
Lápide.
Retrato sépia oval.
Rosto, enigma,
Hiato: 1911 – 1980.
Silêncio, apneia,
Tarde, mormaço.
Cruz erguida,
Vazia.
Nada além.
Um vaso com rubros gerânios,
A dor ainda viva de alguém.
2
Rua, larga calçada, noite.
Vitrines acesas.
Entre cores e desejos,
Sorridentes manequins.
Chão –
Um homem seminu estirado.
Mundo apagado,
Carne exposta,
Existência inexistente.
Carnes expostas:
Homens e mulheres animados
Nas mesas do bar em frente.
3
Consultório,
Sala de espera,
Poltronas escuras,
Silêncio, angústia.
Olhos fixados na tela –
Mar cinza, ondas imóveis,
Lua empastada,
Moldura amarela,
Branca parede.
A vida vale, não vale,
Vale, não vale.
Esperança a desfazer-se,
Metástases de pétalas murchas.
Lembranças inúteis
De eternidade e desejos,
De línguas fecundando beijos.
A teia
Estou só.
Noite.
Luzes apagadas,
Olhos fechados,
Limito-me a respirar,
Imóvel na poltrona.
Não estou trancado no quarto.
Apenas estou só, de olhos fechados.
Noite calma,
Dor intensa,
Tão intensa
Que é quase paz.
Nem livre, nem preso,
Nos pensamentos que se esgarçam
E me enredam.
Não, que se diga a verdade,
Preso, sim,
Na teia.
Presa imobilizada
Pelos venenos da vida.
Amores...
Inútil chorar por eles.
Não há.
Inútil, portanto,
A lágrima sub-reptícia
Que me toca os lábios.
Sal.
O mar, olhando eu ficava,
De olhos parados,
Na praia deserta.
Entardecer sombrio,
Ondas escuras,
Vida apagada.
Os frios mistérios no fundo.
Estes, cá dentro, que são meus,
Que são eu, todos eu.
Um ou mil estilhaços
Rompendo-me de dentro,
Cravos e espinhos brotando
De meu corpo, este, aqui,
Miserável e nu.
Perdido
Nos olhos fechados da noite.
Eu que estou só,
Como sempre estive,
Anjo perverso,
Íncubo, súcubo, pobre delirante
E lúcido, porém nas trevas.
Onde me escondo,
Onde estou dentro de mim?
Onde se escondem os amores dos outros?
Não há.
Um inseto zumbe em meus ouvidos.
Vem e vai, vem e vai.
Ondas,
Círculos disformes no ar,
Ondas escuras,
Imprevisíveis trajetórias
De gaivotas voando,
De repente mergulhando,
E depois se alçando para o ilimitado.
Não eu, decaído,
Mergulhado na asfixia,
Embora respire.
Não vejo os limites deste quarto,
As paredes, os diedros,
Não, estou preso à finitude da vida.
Não há aqui uma flor que me deixasse o perfume.
Uma flor lilás.
Lilás era o manto que cobria o cristo morto.
E nós, crianças, devíamos erguer um pouco
Aquele manto e beijar os frios pés de gesso,
Sob o bruxuleio lacrimejante dos círios
E olhares das beatas de véus negros.
Morreste em vão,
Deixaste-nos o silício
E a ilusão de que poderíamos também amar.
Não podemos.
Nossa realidade não tem essência,
Nosso estofo é o medo.
Estou só na noite fria.
Meus olhos estão fechados,
Meu coração pulsa
Em vão, como morreste.
E a morte não tem olhos,
Não tem corpo, não jaz.
Nada sendo, é tudo.
Como está frio!
Deem-me uma bebida forte!
Aplaquem a minha dor!
Encharquem-me os lábios com vinagre!
De que vale isso..
A imobilidade nesta poltrona,
Nesta cruz,
A percorrer esses labirintos absurdos,
Construídos sem quaisquer saídas.
Reflexão
O que sou sem o outro?
Nada.
Sem o outro
Não posso amar,
Sem o outro
Nada tenho a dizer,
Sem o outro
Não há porque sorrir,
Sem o outro
Não há o que sonhar,
Sem o outro
Não me construo,
Sem o outro
Não me conheço.
Se tenho sede
O outro é água,
Se tenho fome
O outro é pão,
Se tenho frio
O outro é chama,
Se tenho medo
O outro é mãe.
Que à imagem e semelhança
Do outro
Sempre eu me veja,
Que isto é o bastante no viver.
E que me veja sempre o outro
Como água, e pão,
E chama, e mãe,
Sem que nada precise me dizer.
??
O que é isto que sou?
Isto, este que escreve, o que é?
?
O que constrói este sinal?
Ou desconstrói?
De que fala este sinal?
O que pergunta este sinal?
Por que só ele me possui?
E me trespassa,
E estilhaça-me
Em fragmentos inúteis de nada?
O nada existente.
Mas é isto o que sou?
Quando se morre,
O que se desfaz?
Mas, se nada sou,
Não morro, ou morro?
Arritmia
O espelho,
O rosto,
Eu.
Barba,
Torneira,
Água
Escorrendo na pia.
Manhã.
Um dia a mais,
Um dia a menos,
Sístole,
Diástole.
O que resta do rosto:
Rugas bordando bocejos,
Ineludíveis pálpebras
Empapuçadas.
Nem espanto, nem desejos.
Pia cheia de água,
Ego te baptizo:
Batráquio.
Ritos, rictus.
In nomine Patris et Fillii,
Facies, ritmos,
O res ridicula,
Orff-Catullo,
Ri-di-i-cu-u-la
Ri-diii-cula.
Escleróticas sanguirraiadas,
Vinho,
Insônia e fracasso
Eu só –
Uno – trino,
Sataníssima trindade,
Carne exposta no silêncio,
Esse que jaz atrás do rosto,
E fala, filho,
E ouve, pai,
E espreita
No fundo do nada, medo.
Coração aos tropeços.
Extrassistolia.
Água escorrendo na pia.
O espelho,
Os olhos,
Enganadora superfície polida.
Meus, não os conheço.
Vidro, estanho, prata,
Nada há ali, aqui.
Planos, convexos,
Côncavos imensos,
Para observar o universo.
Matéria estruturada...
Elementos,
Argentum, plumbum,
Aurum,
Hydrargiros.
Mercúrio,
Mensageiro alado,
Planeta, um corpo errante
Este meu, absurdo,
Este absurdo.
Deuses, deusas,
Ambrosia, sexos,
Deles bastam os sexos,
Bastam-me os meus,
Que não me bastam.
Surgida da espuma das águas.
Tépida a água agora.
Branca espuma no rosto.
Operação singular:
Minúsculo objeto,
Haste azul,
Delicadas lâminas paralelas,
Deslizando suaves sobre a pele.
Uma navalha fosse...
Sob a mandíbula
Um fino profundo sulco
Vermelho.
Um traço sempiterno,
Assistolia,
Éden.
Olhos perdidos
A leste do éden.
O espelho,
Boca entreaberta,
Língua ávida
De línguas.
Tu me amas?
Salivas.
Algaravias,
Línguas deslizando suaves
Nas falas,
Nas peles,
Nos sulcos, nas falhas, nos falos,
Tateando em busca,
Em vão.
Torneira,
Água escorrendo na pia.
Sede,
Prazer,
Agonia.
Gozo -
Sagrada aporia:
Quanto mais pleno,
Mais plenamente vazio.
Coriolis,
A física pelo ralo,
Levando espuma
E partículas grisalhas.
Senilidade.
Depois o fundo
Que aterra.
Os olhos,
Dois buracos.
O espelho,
Um rosto
Sem desejo.
Só espanto.
Manhã.
Um dia,
Eu,
Nada.
Água
Escorrendo
Na pia.